"Dinamismo di un cane al quinzaglio" (1912). Giacomo Balla.
Escrito por Filippo Tommaso Marinetti e publicado no jornal francês "Le Figaro", em Fevereiro de 1909, o Manifesto Futurista inaugurou um dos mais importantes movimentos artísticos do século XX. Tendo por base os desenvolvimentos tecnológicos de finais do século XIX, a pintura futurista apostava muitas vezes na sobreposição de imagens, imprimindo dinamismo à cena representada. As figuras ameçavam escapar do seu contorno, exaltava-se a velocidade e a força numa tentativa de representar o movimento e, com isso, inaugurava-se uma nova crença estética no seio das artes.
A primeira grande exposição de pintura futurista teve lugar em Milão, a 30 de Abril de 1911. Daí a três anos, uma grande parcela dos artistas que aderiram ao movimento tornaram-se críticos uns dos outros e alvos da pressão exercida pelo próprio Marinetti. Com a entrada de Itália na I Guerra Mundial, quando declarou guerra à Áustria em Maio de 1915, a maior parte das actividades artísticas sofreu um interregno. Após a Guerra, quando o grupo futurista se reuniu à volta de Marinetti, o movimento e as ideias já não reflectiam a forma de pensar de outrora e o novo futurismo acabaria por ficar ligado ao Fascismo. Contudo, as ideias inovadoras de um Boccioni, Giacomo Balla ou Duchamp (sim, esse mesmo, com o "Nu Descendo a Escada"...) seriam aproveitadas para desenvolver alguns dos movimentos artísticos que foram surgindo ao longo do passado século. Ficam as obras e o Manifesto...
Manifesto Futurista
"Então, com o vulto coberto pela boa lama das fábricas - empaste de escórias metálicas, de suores inúteis, de fuligens celestes -, contundidos e enfaixados os braços, mas impávidos, ditamos nossas primeiras vontades a todos os homens vivos da terra:
1. Queremos cantar o amor do perigo, o hábito da energia e da temeridade.
2. A coragem, a audácia e a rebelião serão elementos essenciais da nossa poesia.
3. Até hoje a literatura tem exaltado a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono. Queremos exaltar o movimento agressivo, a insónia febril, a velocidade, o salto mortal, a bofetada e o murro.
4. Afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um carro de corrida adornado de grossos tubos semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que a Vitória de Samotrácia.
5. Queremos celebrar o homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra, lançada a toda velocidade no circuito de sua própria órbita.
6. O poeta deve prodigalizar-se com ardor, fausto e munificência, a fim de aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais.
7. Já não há beleza senão na luta. Nenhuma obra que não tenha um carácter agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças ignotas para obrigá-las a prostrar-se ante o homem.
8. Estamos no promontório extremo dos séculos!... Por que haveremos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Vivemos já o absoluto, pois criamos a eterna velocidade omnipresente.
9. Queremos glorificar a guerra - única higiene do mundo -, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo da mulher.
10. Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de todo o tipo, e combater o moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e utilitária.
11. Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela sublevação; cantaremos a maré multicor e polifônica das revoluções nas capitais modernas; cantaremos o vibrante fervor nocturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas eléctricas: as estações insaciáveis, devoradoras de serpentes fumegantes: as fábricas suspensas das nuvens pelos contorcidos fios de suas fumaças; as pontes semelhantes a ginastas gigantes que transpõem as fumaças, cintilantes ao sol com um fulgor de facas; os navios a vapor aventurosos que farejam o horizonte, as locomotivas de amplo peito que se empertigam sobre os trilhos como enormes cavalos de aço refreados por tubos e o voo deslizante dos aviões, cujas hélices se agitam ao vento como bandeiras e parecem aplaudir como uma multidão entusiasta.
É da Itália que lançamos ao mundo este manifesto de violência arrebatadora e incendiária com o qual fundamos o nosso Futurismo, porque queremos libertar este país de sua fétida gangrena de professores, arqueólogos, cicerones e antiquários.
Há muito tempo que a Itália vem sendo um mercado de belchiores. Queremos libertá-la dos incontáveis museus que a cobrem de cemitérios inumeráveis.
Museus: cemitérios!... Idênticos, realmente, pela sinistra promiscuidade de tantos corpos que não se conhecem. Museus: dormitórios públicos onde se repousa sempre ao lado de seres odiados ou desconhecidos! Museus: absurdos dos matadouros dos pintores e escultores que se trucidam ferozmente a golpes de cores e linhas ao longo de suas paredes!
Que os visitemos em peregrinação uma vez por ano, como se visita o cemitério dos mortos, tudo bem. Que uma vez por ano se desponte uma coroa de flores diante da Gioconda, vá lá. Mas não admitimos passear diariamente pelos museus, nossas tristezas, nossa frágil coragem, nossa mórbida inquietude. Por que devemos nos envenenar? Por que devemos apodrecer?
E que se pode ver num velho quadro, senão a fatigante contorção do artista que se empenhou em infringir as insuperáveis barreiras erguidas contra o desejo de exprimir inteiramente o seu sonho?... Admirar um quadro antigo equivalente a verter a nossa sensibilidade numa urna funerária, em vez de projectá-la para longe, em violentos arremessos de criação e de acção.
Quereis, pois, desperdiçar todas as vossas melhores forças nessa eterna e inútil admiração do passado, da qual saís fatalmente exaustos, diminuídos e espezinhados?
Em verdade eu vos digo que a frequentação quotidiana dos museus, das bibliotecas e das academias (cemitérios de esforços vãos, calvários de sonhos crucificados, registros de lances truncados!...) é, para os artistas, tão ruinosa quanto a tutela prolongada dos pais para certos jovens embriagados, vá lá: o admirável passado é talvez um bálsamo para tantos os seus males, já que para eles o futuro está barrado... Mas nós não queremos saber dele, do passado, nós, jovens e fortes futuristas!
Bem-vindos, pois, os alegres incendiários com os seus dedos carbonizados! Ei-los!... Aqui!... Ponham fogo nas estantes das bibliotecas!... Desviem o curso dos canais para inundar os museus!... Oh, a alegria de ver flutuar à deriva, rasgadas e descoradas sobre as águas, as velhas telas gloriosas!... Empunhem as picaretas, os machados, os martelos e destruam sem piedade as cidades veneradas!
Os mais velhos dentre nós têm 30 anos: resta-nos assim, pelo menos um decénio mais jovens e válidos que nós deitarão no cesto de papéis, como manuscritos inúteis. - Pois é isso que queremos!
Nossos sucessores virão de longe contra nós, de toda parte, dançando à cadência alada dos seus primeiros cantos, estendendo os dedos aduncos de predadores e farejando caninamente, às portas das academias, o bom cheiro das nossas mentes em putrefacção, já prometidas às catacumbas das bibliotecas.
Mas nós não estaremos lá... Por fim eles nos encontrarão - uma noite de inverno - em campo aberto, sob um triste telheiro tamborilado por monótona chuva, e nos verão agachados junto aos nossos aviões trepidantes, aquecendo as mãos ao fogo mesquinho proporcionado pelos nossos livros de hoje, flamejando sob o voo das nossas imagens.
Eles se amotinarão à nossa volta, ofegantes de angústia e despeito, e todos, exasperados pela nossa soberba, inestancável audácia, se precipitarão para matar-nos, impelidos por um ódio tanto mais mais implacável quanto os seus corações estiverem ébrios de amor e admiração por nós.
A forte e sã injustiça explodirá radiosa em seus olhos - A arte, de facto, não pode ser senão violência, crueldade e injustiça.
Os mais velhos dentre nós têm 30 anos: no entanto, temos já esbanjado tesouros, mil tesouros de força, de amor, de audácia, de astúcia e de vontade rude, precipitadamente, delirantemente, sem calcular, sem jamais hesitar, sem jamais repousar, até perder o fôlego... Olhai para nós! Ainda não estamos exaustos! Os nossos corações não sentem nenhuma fadiga, porque estão nutridos de fogo, de ódio e de velocidade!... Estais admirados? É lógico, pois não vos recordais sequer de ter vivido! Erectos sobre o pináculo do mundo, mais uma vez lançamos o nosso desafio às estrelas!
Vós nos opondes objecções?... Basta! Basta! Já as conhecemos... Já entendemos!... Nossa bela e hipócrita inteligência nos afirma que somos o resultado e o prolongamento dos nossos ancestrais. - Talvez!... Seja!... Mas que importa? Não queremos entender!... Ai de quem nos repetir essas palavras infames!...
Cabeça erguida!...
Erectos sobre o pináculo do mundo, mais uma vez lançamos o nosso desafio às estrelas."