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terça-feira, 31 de janeiro de 2012

O Cabo dos Prodígios de Ulisses



Nenhuma outra ilha na corrente do mar Jónico o esperaria, nem Posídon veio, com o mar brilhante na mão, tentar Ulisses. Nem o grito das gaivotas de água funda.

Outro destino Ulisses prosseguia: Ítaca, a ilha soalheira. E ao cabo desse destino, o fim dos prodígios.

O regresso de Ulisses a Ítaca terminou os prodígios, levaria o herói, o “homem astuto”, ao quotidiano pacato, sem história, da sua vida no Lar, e aos silênciosos e também astutos braços de sua Penélope, a artesã que fazia e desfazia o tempo.

Cenas típicas”, como uma partida ou uma refeição sem apetite, um banho na banheira de Circe ou o derramamento de água sobre as mãos, misturadas com cenas de epopeia onde predominou o maravilhoso, numa antecipação de milénios de um realismo fantástico, tudo cessaria à vista de Ítaca.

Mais do que todos os companheiros, “Ulisses era o único que suspirava pelo regresso e pela esposa, detido numa côncava gruta pela veneranda ninfa Calipso, a deusa preclara.” ( Odisseia, trd. Padres Palmeia e Correia, Sá da Costa, 1972)

Mas nem sempre os prodígios foram de puro prazer aventureiro e epicurista. As grutas côncavas de Calipso, sedutora, teriam alguns encantos, assim como o palácio de Circe; mulheres, vinhos e tesouros seriam coisas encantatórias.
Na diegese que Ulisses faz a Alcínoo, a pedido deste, no Canto IX, auto-avalia as suas periécias, assim:

Mas o teu espírito voltou-se para as minha desgraças, / para que eu chore e me lamente ainda mais”. ( Odisseia, Canto IX, pág. 145, Trad. Frederico Lourenço, 2010)


Que coisa deveria contar primeiro? Os prodígios? Mas até estes não foram isentos de desgraça: “Pois muitas foram as desgraças que me deram os Olímpios”.
Homero ao dar-lhe um altar, marca-o também como “o sofredor e divino Ulisses”, no verso 490 do Canto final do seu poema épico.
Na própria identificação a Alcínoo, Ulisses inicia o desenrolar da sua história maravilhosa com uma referência aos seus enganos:

Sou Ulisses, filho de Laertes, conhecido de todos os homens pelos meus dolos”.


Se o início da viagem, a saída de Ítaca rumo a Tróia foi de esplendor e de sucessos, o regresso – imposto por Zeus, diz o herói- foi “doloroso”, porque foi atrasando – como sucedeu aos hebreus a caminho de Canaã – com transtornos, escolhos, tornando ainda distante o Lar.
Mas Ítaca não seria, na diegese da Odisseia, menor do que Odisseu, nem menor que as aventuras prodigiosas que foi vivendo o herói no plano do maravilhoso.

Parafraseando Ezra Pound em “Personae”, Ulisses que já “celebrara mulheres em três cidades, mas era tudo a mesma coisa”, sabia que Ítaca era maior.
Ítaca ou o tão desejado retorno seria o derradeiro prodígio. As lendas mitológicas não se substituiriam à realidade da ilha verde e humilde, da ilha soalheira mas áspera.

Cuentan que Ulises, harto de prodigios,


lloró de amor al divisar su Itaca

verde y humilde. El arte es esa Itaca

de verde eternidad, no de prodigios.

Jorge Luis Borges, no poema Arte Poética, em favor de Ítaca, desvalorizou os prodígios.
O Tirésias da Poesia Contemporânea do Século XX, que inventou “He visto, como ele griego, las urbes de los hombres”, como um manifesto e propositado exagero em relação a Homero e a Ulisses (na Odisseia), sabia que os prodígios eram a erudição de Homero.

Aveiro, 31/1/2012

© J.T.Parreira


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