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domingo, 6 de março de 2022

Cinco (breves) contos de Aldair Santos



INCIDENTE PROCESSUAL

Aconteceu há alguns anos atrás. Era época do processo físico ainda e o processo eletrônico ainda engatinhava. O fórum fervilhava de poeira e… baratas. Pilhas e pilhas de processos se amontoavam nas mesas, do escrivão ao juiz. O ruído do carimbo de “Folhas” ecoava em batidas monótonas nas folhas a serem numeradas. A morosidade era o tom da Justiça. Despachos repetitivos e amarelados eram entranhados nos processos. A Justiça era de papel e burocrática.


O Promotor acha uma barata esmagada dentro de um processo. O inseto estava inerte, seco, grudado, nojenta como toda barata. O Promotor, vendo o inseto repugnante, escreve um despacho indignado ao juiz alertando sobre a insalubridade do fórum, sobre o significado filosófico da barata e, por fim, sobre a barata esmagada como um incidente processual que atenta contra a dignidade do Poder Judiciário. Não era possível que tenha recebido um processo naquelas condições. Não era possível que o fórum estivesse naquelas condições. Isso poderia ocasionar doenças aos próprios servidores, visto que a repugnante criatura poderia ser portadora de patógenos que deixavam em perigo a saúde humana. Antes de tudo era uma situação de saúde pública, uma afronta a dignidade humana, uma vergonha ao judiciário e até um atentado contra a ordem pública do país e a dignidade das pessoas. Situação digna de ser mencionada nas cortes internacionais, visto que o inseto referido era cosmopolita e situação semelhante poderia estar ocorrendo no mundo inteiro.


Claro que o Promotor usou mais outras palavras do juridiquês para dizer que a barata era, data vênia, uma “excrecência” processual inaceitável. E enviou o despacho-desabafo ao juiz.


O juiz leu atentamente e com respeito o despacho, e escreveu uma decisão concisa.
“O MM juiz Fulano de Tal, no uso de suas atribuições e etc., decide:
Desentranhe-se a barata do processo.
Publique-se. Registre-se. Cumpra-se.”


O MEDO E A CORAGEM

O Medo e  a Coragem sempre andavam por caminhos opostos. Mas um dia, por um erro de percurso encontram-se numa encruzilhada.

– Sra. Coragem, jamais pensei em encontrá-la.

– Inusitado encontro Sr. Medo. Em geral não nos damos bem, pois onde eu estou, você não está, aliás, você sempre foge.

– Fujo, mas sobrevivo. Por que o medo é saudável e necessário. O medo salva a vida de quem o tem.
– Mas também enterra talentos, mata grandes inventos, destrói sonhos e enterra grandes descobertas.

– Sou o cúmulo da prudência. As pessoas sempre me usam em atitudes de precaução. Dessa forma, me confundo até com a sabedoria e a prudência.

– Sei. As pessoas te usam mesmo é como desculpa para inúmeros “não posso” e  ‘não consigo”. Às vezes você é traumatizante, às vezes é grande vilão. Você é a inércia humana em pessoa e um retrocesso.

– Saiba que a inércia do medo pode ser estratégica. Um passo atrás podem levar a dois passos para frente.

– Onde está o medo, está o fracasso. Onde está a coragem, está o sucesso. Isso é certo.

– Já vi que não vamos nos entender, porém admiro sua coragem.

E foram-se tomando caminhos opostos. Como sempre foi.


 ENGANOSO

– Aquieta-te, ditador! – esbraveja.

– Ditador és tú, que não me deixas fazer a minha vontade. Eu sei o que é melhor pra ti!
– Tuas escolhas não são boas e não estão de acordo com a Palavra de Deus. Se tu fizeres a tua vontade  sempre acabarás mal. Você é enganoso!
– Mas como fica a minha felicidade? A Bíblia diz que Deus satisfará aos MEUS desejos.
– Sim, mas, antes, ela diz “agrada-te do Senhor”, isto é, teus desejos devem ser os mesmos de Deus e não teus próprios.
– Isso são apenas detalhes de ponto de vista, nada sério. Minha vontade é que vale!
– Aquieta-te, enganoso. Põe-te no teu lugar!

E a discussão do homem com seu próprio coração foi noite adentro, com possibilidade da briga continuar no dia seguinte.
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“Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?” Jeremias 17:9



OPINIÃO

A senhora corpulenta adentra a farmácia. Dirige-se até a balança nos fundos da loja. Aguarda um pouco, até estar sozinha. Sobe na balança. Um olhar arregalado mostra a surpresa. Recompõe-se.

— Vou ver uma segunda opinião.
E dirigiu-se a  outra farmácia.



FÉ ERUDITA

Era conhecido por ser estudado e ter linguagem culta e rebuscada. No início do culto, fez o convite à congregação:

– Irmãos, genuflexos, vamos solenemente, verbalizar em copiosas súplicas, derramando a alma pesarosa em entranhada atitude oracional perante a abóboda celeste.
Preocupada, uma senhora bem simples pergunta baixinho ao irmão universitário ao lado:

– O que foi que ele disse? O que foi que ele disse?

– Ele disse “Vamos orar”.


Leia mais textos no blog do autor: https://aldairsantosrr.wordpress.com/


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