Um conto de fantasia histórica e mistério tendo por pano de fundo a Baía de Guanabara dos séculos XXI e XVIII. Uma concha enigmática arroja três mergulhadores da Petrobrás a séculos no passado - para uma aventura que lhes custará praticamente tudo.
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Ou pode ler o conto aqui abaixo.
A Concha Azul
Mistério e aventura
na Baía de Guanabara
Os oito
mil reais mensais auferidos por seu trabalho como mergulhador da Petrobrás
permitiam a Juliano oferecer uma muito cômoda vida à sua família. A profissão
de mergulhador, para além disso, o levara a conhecer quase meio mundo. O regime
de trabalho, por plantões, lhe permitia muito tempo livre, que dedicara ao seu
crescimento pessoal, com viagens e duas graduações – em História e Filosofia –
que ele fizera apenas pelo prazer da realização intelectual.
Nos
últimos tempos Juliano estava à frente de uma pequena equipe especializada em
realizar sondagens e pequenos reparos em plataformas petrolíferas, mas já não
indo até elas: elas é que “vinham” a eles. A Petrobrás passara a ancorar
plataformas petrolíferas a serem consertadas ou aprimoradas dentro da Baía de
Guanabara – dita Iguaá-Mbara pelos primeiros índios que habitaram seu
entorno – o que permitia aos mergulhadores daquela equipe privilegiada
não ter que viajar constantemente.
Numa
dessas missões, a equipe se dirigira para o litoral da cidade de Niterói, um
dos sete municípios que compõem o circuito litorâneo da Baía. A bordo de uma
pequena lancha, amparados por uma equipe de três tripulantes e um engenheiro
naval, os três mergulhadores submergiram próximo aos bairros niteroienses de
Boa Viagem e Gragoatá, local onde estava fundeada a plataforma que seria
avaliada.
Os
mergulhadores iniciaram as inspeções de rotina, observando coluna por coluna de
sustentação dos flutuadores daquela imensa estrutura metálica semissubmersível.
Foi quando, na terceira das colunas vistoriadas, o mergulhador experimentado que
encabeçava a equipe viu aquela concha. Azul rutilante entre o caos calcário das
cracas e algas, aquilo era uma impossibilidade mineralógica intuível até por um
leigo. Era mesmo como se aquela concha, dentre a profusão turva de dejetos, pulsasse.
Juliano fez sinal para Edvaldo, que carregava sua máquina fotográfica padrão.
Deixando seu afazer, aproximou-se e fotografou a concha. Fez um sinal de OK com
os dedos para Juliano, que sorriu para si dentro de seu snorkel. Belíssima
foto.
Enquanto
Juliano e Edvaldo se comunicavam por sinais, o terceiro membro da equipe,
Mauro, que fora alertado pelo flash da máquina fotográfica, se aproximou
da esplendorosa carcaça do crustáceo, e puxou-a.
Não se
saberá jamais se foi o simples toque naquele objeto, ou se o fato dele ter sido
arrancado da cracaria o que deflagrara um tipo de gatilho: um clarão azul
inundou o entorno, fremente como uma onda de choque, adensando por um instante
a água com seu pulso, cegando e atordoando os três mergulhadores. Após
dissipar-se, não havia mais turbidez maculando a água, agora límpida. Junto com
a poeirenta fuligem marinha, desaparecera a própria plataforma.
- O que
você fez? – gritou Juliano pelo rádio. Mauro, desnorteado e com a concha nas
mãos, não podia falar, e com a mão livre fez sinal de espalmá-la na horizontal,
como quem diz “não sei!”
Edvaldo,
após olhar em todas as direções, comunicou o sumiço da plataforma.
- A
plataforma sumiu! Será que a explosão nos lançou para longe dela?
Mas
aquela explosão fora mais de luz do que de ondas de choque. Juliano
instintivamente apertou com mais força a coronha de seu arpão.
A
tentativa de comunicação via rádio com a superfície redundara apenas em
silêncio. Sequer as mudanças de frequência do rádio davam algum sinal. Juliano,
líder da equipe, fez sinal para o grupo emergir.
Além do
espelho d’água, uma paisagem arcana, feita de azuis e matas intactas, os
saudara. Nenhum navio, nenhum edifício. Um horror frágil e desconcertante tomou
conta dos mergulhadores, emudecendo-os.
Ao longe,
divisaram a luz de uma fogueira, que ardia apesar do sol que ainda brilhava
naquele final de tarde. Juliano fez sinal para que eles avançassem para a
praia.
Mauro,
menos experiente, não se conteve:
– Juliano,
o que está acontecendo? Fomos jogados pra longe? Cara, olhe para o outro lado
da baía!!!
Somente
então, alguns minutos depois de emergirem da deflagração daquela singularidade
que os atordoara, puderam divisar à distância o contorno do Pão de Açúcar. Se
não havia respostas, tampouco dúvidas restavam: estavam no mesmo lugar em que
haviam mergulhado, às margens da praia de Gragoatá, em Niterói. Mas o contorno
da orla estava diferente: a praia era muito mais longa, pois os imensos aterros
que expandiram a região do centro de Niterói, mar adentro, inexistiam; o
pequeno Forte do Gragoatá, única construção visível naquelas margens
verdejantes, estava algo diferente, derramado por sobre uma grande pedra. Nenhuma
sentinela ou vivalma que fosse era visível por sobre as amuradas. O que era
tudo aquilo?
Do outro
lado da baía de Guanabara, o que fora ou seria um dia o Rio de Janeiro refulgia
em seu esplendor de rocha e mata. Praticamente nenhum prédio, nenhum construto
humano era visível.
Um breve
diálogo de horror se estabeleceu e morreu entre os três mergulhadores. Se não
havia respostas, havia a fogueira, sinal humano, e onde há homens há
esclarecimentos – ou ao menos essa era a intuição que lhes animava.
Ao
aproximarem-se um quilômetro mais daquela grande fogueira, notaram figuras
humanas em seu derredor. Avançando agora em cautela, logo perceberam que eram
indígenas. Índios aprisionados. Em torno de 15 indivíduos, dentre aparentemente
homens, mulheres e crianças, estavam de pé, e amarrados com uma mesma e longa
corda, que lhes cruzava os pulsos e pescoços, formando uma sinistra corrente
humana.
O relevo
sobre o qual os mergulhadores avançavam margeava em curva a linha do litoral. A
princípio se perguntaram o porquê de os aprisionados não se moverem, ou
buscarem escapar. Mas ao seguir sua marcha em curva, logo receberam, dum único
golpe, as respostas àquelas dúvidas. A alguns metros do grupo indígena que
circundava a grande fogueira, seis indivíduos brancos faziam guarda, quatro em
pé, dois sentados, aparentemente manuseando seus armamentos. E, na ponta de seu
campo visual, viram um grande navio, velha caravela de escura madeira.
Os três
abrigaram-se sob a capa de um arbusto e debateram sobre o que fazer. Edvaldo
falou que estava claro que haviam viajado no tempo. Mauro apenas ria e chorava de
nervoso. Juliano, o silencioso líder, soltou alguns resmungos e disse que
poderiam estar talvez numa outra dimensão. Falou também o que deveriam fazer:
Esconder o máximo possível de apetrechos e trajes que causassem estranhamento
naquelas pessoas, e avançar até elas, contando alguma história sobre serem de
algum povo do interior, fruto talvez de uma incursão de algum desbravador
português. Sim, pois certamente aqueles eram portugueses; e estranhariam o
sotaque dos três desterrados do tempo ou do espaço multidimensional.
Ao
aproximarem-se ainda mais, sempre às ocultas, o experimentado Juliano julgou
ouvir alguns gritos. Observando, percebeu que um dos brancos gritava ordens a
um outro, fora do campo de visão, talvez vindo da direção em que estava
fundeado o navio deles. Uma nova pausa, enquanto ouvia atento, foi seguida de
um novo descarte de impropérios e palavrões. Juliano ouvira bem diversas das
palavras gritadas, mas nenhuma delas soava em português. Se não compreendeu
perfeitamente o que era falado, ao menos a língua ficou logo clara, a velha
língua dos francos. Eram franceses aqueles captores de indígenas. O líder da
equipe falava algo da língua, de quando trabalhara na Líbia, no início de sua
carreira como mergulhador. Mas havia algo diferente dos diversos sotaques
franceses com que lidara naqueles quase nova anos de trabalho: aqueles
indivíduos eram falantes de um francês acobreado, crioulo, um francês calcinado
pela maresia.
O
mergulhador soltou mais alguns palavrões.
Na
verdade, era o historiador nele quem vomitava impropérios, pois, passado o
primeiro susto, um horror mais calmo se estabeleceu, uma fagulha de
compreensão.
Juliano
se graduara em História e era bom leitor, mas não um especialista naquele
período. No entanto, as vestimentas daqueles prováveis franceses, a forma com
que caçoavam uns dos outros, enquanto bebiam o líquido rubro de algumas
garrafas, possivelmente algum destilado, levou Juliano a sugerir que se tratavam
na verdade de piratas.
Nesse
caso, o risco de uma aproximação era muito maior. Bem fariam em dar meia volta
e procurar alguma povoação, ou simplesmente tentar a sobrevivência em meio à
mata, pois a noite já descia seu véu negro sobre a paisagem.
Juliano bem
sabia que a Baía de Guanabara é cercada por fortes. O Forte do Gragoatá, embora
um pouco diferente do que ele conhecia, ali estava como prova. Eram o
instrumento de defesa – nem sempre efetivo – contra incursões de conquistadores
ou corsários.
Tudo de
que ele se lembrava era que aconteceram ao menos duas grandes incursões de
corsários franceses seguidas na Guanabara, a primeira sendo rechaçada, o que
induziu o governo colonial a erro acreditando que as fortalezas que guarneciam
a entrada ou barra da baía eram inexpugnáveis; no ano seguinte, uma armada mais
poderosa em homens e em armas, e chefiada por um pirata de maiores capacidades,
de cujo maldito nome Juliano não conseguia se lembrar, apanhou a cidade de
calças arriadas, e permaneceu aqui certo tempo, só saindo após obter duro
resgate.
Só agora
ocorria ao historiador que nada aprendera sobre alguma eventual chegada dos franceses
à Vila Real da Praia Grande, a que hoje é Niterói. Mas seria natural que, em
busca de saques e de debelar focos de resistência como aquele forte, eles
chegassem ao outro lado da Baía, sendo tão próximo da cidade de São Sebastião
do Rio de Janeiro. Seriam assim aqueles lobos do mar membros da armada que
tomara a cidade do Rio?
Enquanto
confabulavam, Juliano mantinha o olhar fixo na movimentação daquela clareira.
Foi quando percebeu que um dos indígenas, aparentemente um idoso, devido aos
seus longos cabelos brancos, estava virado na direção em que eles se
encontravam, e parecia mesmo observar fixamente aquela posição. Mesmo a boa
distância, esse breve momento de cruzamento de olhares fez o velho, que tinha
como os demais as duas mãos amarradas à frente de seu corpo, abrir uma de suas
mãos, de onde deixou escapar um fulgor azul de grande singularidade. Era a concha!
A concha que os jogara naquele pesadelo brilhava nas mãos do índio que dera as
costas aos franceses e parecia ter certeza de que alguém estava ali, naquela
mata, observando-os.
Havia
algo familiar no olhar daquele ancião. E havia algo de sinistro no fato dele
não suspender os olhos que pesavam sem cessar sobre a figura de Juliano – e como
que apenas sobre a dele.
Agora o
mistério ganhava novas cores; melhor, uma única e fulminante cor azul, uma
concha ou gema ou olho-do-diabo ou que diabos fosse que tinha ou precisava ter a
resposta. A explicação para tudo aquilo poderia esperar, mesmo que pelas
eternidades. Mas era preciso apossar-se da concha; ela os lançara naquele
sonho-pesadelo, e talvez fosse a porta de saída. No entanto, para isso talvez
fosse necessário não apenas aproximar-se mais do grupo de índios, mas
provavelmente libertá-los – pois o velho exibira a concha como um chamariz –, o
que aconteceria não sem luta contra aquele corpo de piratas, que eles sequer
sabiam quantos eram. O que quer que fosse toda aquela desgraça, a maldita
concha era o graal a ser reconquistado.
Edvaldo,
exausto, propôs que esperassem o dia seguinte e o andamento da situação, para
analisar uma melhor maneira de proceder. Mas a questão era clara para Juliano:
eles estavam favoravelmente próximos do pequeno acampamento pirata, e a noite
já caíra. Era preciso se aproximar e soltar os índios, e apanhar a concha
daquele estranho personagem, e se necessário fosse, dar cabo daquelas brancas ratazanas
do mar.
Juliano
perguntou se algum de seus companheiros já havia matado alguém. Espantadas, cabeças
balançaram-se lateralmente em resposta. De toda forma, ambos foram militares
antes de optarem pela mais rentável profissão de mergulhadores civis da
Petrobrás. Ao menos possuíam treinamento militar.
* *
*
O trio
esperou por horas até que a maior parte dos franceses de guarda adormecesse.
Ao
perceber a aproximação do grupo, o velho, como quem já aguardasse aquele
movimento, cutucou alguns dos outros índios que lhe estavam próximos, acordando-os.
Com sua faca de mergulho Morakniv, por acaso comprada numa loja de
militaria nesta mesma futura cidade de Niterói, Juliano cortou primeiro
as cordas de seu pulso. Rapidamente outros foram desenlaçando-se.
Enquanto
isso, os dois vigias que montavam guarda mais próximos aos indígenas foram
alcançados pelos demais mergulhadores. Edvaldo não hesitou em cortar, mesmo
desajeitado, a garganta do francês, adormecido sobre uma pedra de granito.
Foi o
jovem Mauro, mais uma vez, quem pôs tudo a perder. Ao aproximar a faca da
garganta do embriagado francês, Mauro cometera o erro de puxar primeiro sua
cabeça, agarrando-o pela farta cabeleira, como se desejando melhor expor o alvo
de sua navalhada. Aquilo foi o suficiente para o pirata despertar em susto e em
ação, dirigindo um soco para trás, que, embora pegasse de raspão no rosto de
Mauro, lhe atrapalhou o movimento de corte. O que se seguiu foi uma luta
corporal, barulhenta pelos gritos do francês.
Juliano
foi pego de surpresa pela gritaria; estava absorto e algo desesperado não tanto
em libertar os demais indígenas, mas em inquirir, mesmo sem palavras, ao velho
índio que aparentemente, ao abrir as mãos, não mostrava mais a maldita concha.
Outros gritos em francês se fizeram ouvir à distância. Agora era tarde para dar
atenção ao velho. Gritando, Juliano alertou Edvaldo:
– Apanhe
a espada do francês e vá ajudar Mauro! Depois recuem!
De posse
da gasta espada do corsário que abatera, afoito e tremendo pelo desespero da
situação, Edvaldo lançou-se sobre os dois corpos que se engalfinhavam na
escuridão, atravessando a barriga do francês bem à direita de seu umbigo, mas
causando um pequeno talho num dos braços de Mauro.
O
primeiro clarão espocou pela noite da Guanabara, detonado a partir do bacamarte
de uma sentinela dos sicários.
Dando a
mão ao igualmente trêmulo Mauro, Edvaldo o puxou para junto de si e ambos
correram em desabalada carreira em direção a Juliano e alguns indígenas. A
maioria dos quais havia fugido, mas sete deles permaneceram e, apanhando paus e
pedras, faziam menção de oferecer combate aos seus captores.
No
entanto, em campo aberto e contra o fogo de bacamartes, a causa estaria
perdida. Assim, Juliano, tocando o idoso e o forte índio de meia idade que
parecia ser o líder daqueles que ficaram, apontou para um amontoado de arbustos
a alguma distância, justamente de onde ele e seus companheiros vieram, antes de
iniciar o assalto ao acampamento.
Agora
eram já diversos os franceses que vinham em socorro de seus companheiros. Da
mata, sem condições, pela geografia do lugar, de prosseguir na fuga, os
fugitivos espreitavam o avanço dos franceses.
Nesse
entrevero, Juliano, sempre perseguido pelo olhar severo do velho, que talvez
fosse um pajé, pelo diferenciado de plumas que tinha enfeixado em pulseiras em
seus braços, apanhou a mão do ancião e fez o movimento que o mesmo fizera
antes, exibindo a concha à distância. Em resposta, o velho, que não emitia
palavra, balançou a cabeça negativamente, enquanto Juliano se enchia de fúria.
Num rompante, garroteou o pescoço do velho com uma de suas fortes mãos,
enquanto seus olhos se cruzavam, uma vez mais, em silêncio. O velho não tentou
se desvencilhar, e manteve sua expressão impassível, como que em desafio. Mas,
daquele olhar firme, porém cansado, um brilho diferente refletiu a suave luz da
lua minguante que abraçava os céus daquela noite fantástica. Eram lágrimas.
Foi então
que Juliano sentiu o maior dos desconcertos. Havia algo de familiar naquele
olhar mudo. Familiar o bastante para o fazer afrouxar sua pegada, e por fim
soltar o velho.
Em meio à
confusão, uma outra ação precipitada pôs novamente tudo em risco: vendo a
aproximação de dois franceses, que se achegavam à posição em que se acoitavam,
três dos indígenas, ao invés de aguardarem uma maior proximidade, lançaram-se
em ataque sobre a dupla, emitindo gritos de guerra. Dois deles atiraram pedras,
uma das quais logrou atingir o ombro de um dos corsários, mas o golpe foi impotente
para derrubá-lo ou tirá-lo de combate. Em resposta, os franceses dispararam
suas garruchas, atingindo um dos atacantes. Sacando logo suas espadas, os
navegantes habituados a sangue rapidamente perfuraram os dois indígenas da
vanguarda, cujos paus foram impotentes para impedir os golpes fulminantes dos
floretes.
Apanhados
pela ação temerária dos índios, Mauro e Edvaldo lançaram-se em socorro aos
companheiros. Uma batalha de floretes, paus e socos se seguiu; ao custo de mais
uma vida indígena, e um belo corte na perna de Edvaldo, os piratas foram
sobrepujados.
Mas agora
sua posição estava descoberta; pelo menos quatro outros franceses avançavam
sobre o grupo formado pelos dois mergulhadores e o indígena restante. Era tarde
demais para recuos; Juliano despediu-se de entre as moitas em direção aos seus
companheiros, ansioso por chegar a um dos corpos franceses – e a uma das
espadas, pois tudo que portava era uma faca – antes da aproximação dos demais
atacantes.
Por
sorte, apenas um elemento dessa nova leva de piratas portava uma garrucha, que
disparou a esmo, sem acertar ninguém. Juliano, alcançando um dos corpos,
apanhou a espada e cerrou fileira, lâmina em punho, ao lado de Mauro e Edvaldo,
como três desmazelados ou ao menos improvisados mosqueteiros. O índio que os
acompanhava apanhou um pedaço de pau; outros dois indígenas que seguiram
Juliano logo se juntaram ao corpo de resistentes, um deles apanhando também uma
das espadas. O velho, débil demais para combater, ficara sob a cobertura das
moitas.
A luta
que se seguiu, talhada pela penumbra, foi marcada pelo despreparo dos
mergulhadores no manejo da espada, o que foi suprido pela fúria dos indígenas,
que lutavam com um furor surpreendente, como se fossem vikings ou guerreiros berserkers
normandos. Corsários, indígenas e aqueles viajantes temporais, dimensionais ou
egressos do sonho se engalfinharam num amontoado de faíscas, gritos e sangue.
Dos
mergulhadores, o primeiro a tombar fora Edvaldo; sua barriga fora rasgada. Sentindo
uma dor excruciante, caíra ao chão enquanto segurava tecidos pegajosos e
quentes – suas vísceras. Impossibilitado de levantar-se, era pisoteado pelos
combatentes, e enquanto o tempo transcorria ele se espantava, segundo a
segundo, do fato de que ainda não morrera. Se era um sonho tudo aquilo, ele não
devia ter acordado?
Apoiado
por dois dos indígenas, que se atracaram a um dos franceses, Mauro conseguira
desferir uma estocada certeira no rosto de seu oponente; mas a inexperiência em
batalha o fizera baixar a guarda, acreditando estar vencido o inimigo.
Avançando como um touro, mesmo tendo um dos índios agarrado em seu cangote, antes
de tombar sem forças o ferido francês estocou de raspão o pescoço de Mauro,
cujo sangue passou a jorrar. Empapado pelo sangue que mal podia divisar num momento
em que nuvens cobriam a fraca luz da lua, Mauro cruzava finalmente a tênue
linha vermelha que separa a sanidade da loucura. Desnorteado e gritando palavras desconexas, pensava
apenas em fugir. Retornar ao mar, mergulhar em busca daquela estranha concha,
aquela que deflagrara o clarão. E foi o que fez: correu para a praia, correu em
busca do mar que nunca esquece os seus. Seu sangue esvaía-se como petróleo
ruim, fino, enquanto as águas já lineavam seus joelhos. “A concha, a concha!”, gritava
enquanto misturava seu sangue com a água salgada; a concha que ele morreria
antes de encontrar...
Ocupado
em duelar contra o último dos franceses em pé, Juliano nada pôde fazer pelo
amigo; enquanto mais dois franceses se aproximavam, nosso involuntário
libertador de escravos contabilizava as baixas: seus dois companheiros
aparentemente se haviam perdido; dos seis indígenas combatentes, apenas dois
deles estavam ainda em pé, um deles amargando uma profunda ferida na costela,
enquanto, armado com um florete, fazia cerco ao francês. Aproveitando o momento
de pausa, enquanto os quatro combatentes se mediam, Juliano apanhou mais uma
espada, ocupando agora suas duas mãos. Era preciso eliminar aquele francês antes
que os outros chegassem ao teatro de batalha; imediatamente avançou contra seu
oponente, sendo seguido pelos dois indígenas. Aproveitando-se das duas espadas,
após o primeiro ataque, a título de distração, executou um movimento em forma
de X, recebendo – como imaginara – o contra-ataque do francês, prendendo
momentaneamente sua lâmina. O suficiente para um ataque do indígena, que, se
errou seu golpe, ao menos distraiu o oponente o suficiente para que Juliano lhe
apunhalasse no peito.
À
distância, um dos franceses que acorriam em socorro de seus comparsas, armado
com um bacamarte, ajoelhou-se para fazer pontaria e disparou. O instintivo
grito de “abaixem-se” de Juliano não surtiu efeito algum sobre seus
companheiros, falantes talvez de alguma língua do tronco tupi-guarani; um deles
foi atingido. O outro dos franceses, armado de uma garrucha, seguia avançando,
enquanto seu companheiro parecia estar já recarregando a arma.
Era o
momento da verdade; apanhando as duas espadas numa única mão, Juliano arremeteu
contra o francês, correndo à toda, no que foi seguido pelo índio que
sobrevivera.
A certa
distância, enquanto o francês tentava fazer pontaria enquanto corria, Juliano
aproveitou sua mão livre – para isso a deixara vaga – para lançar sua faca de
mergulho como um dardo em direção ao seu oponente. A faca acertou o gorducho
pirata num dos braços, por sorte o que empunhava a garrucha. O francês a
soltou, mas imediatamente se pôs a catá-la por entre as moitas. Antes que
pudesse encontrá-la, Juliano já saltava sobre o sicário com suas duas espadas,
atravessando-o em pontos paralelos, pouco abaixo do pescoço. O homem que sempre
fora um bom aprendiz no que quer que se propusesse a fazer, demonstrava já uma
insuspeita habilidade na antiga arte de retalhar carne humana.
Enquanto
isso, o indígena avançara em direção ao outro pirata. O sicário finalizava a
recarga de seu grande trabuco, enquanto o índio, como que cavalgando um corcel
de puro ódio, gritava e corria a uma velocidade que pareceu a Juliano sobrenatural.
Ao levantar a ponta da espada, como se fora uma lança, para atravessar o
atirador agachado, foi freado pelo impacto das bolotas de ferro contra seu
peito. Tombou a menos de cinquenta centímetros de seu oponente.
Agora era
Juliano quem corria em direção ao atirador, que se levantara e, sacando sua
espada, aguardava como que pacientemente a investida do mergulhador. A perícia
daquele último corsário fez-se logo evidente; mesmo com uma única espada,
defendia-se com certa facilidade dos ataques das duas espadas de Juliano. Em
pouco tempo, dois talhos, um num braço, pouco abaixo do deltoide, e outro num
antebraço, faziam Juliano sangrar.
A hiena
do mar, até ali em silêncio, perguntou naquele seu estranho francês, quem era
Juliano. O mergulhador, mesmo julgando compreender o teor da pergunta, nada
respondera; seu oponente então fez a mesma pergunta, agora em espanhol. O jogo
de esgrimas continuava, e a situação era desfavorável para nosso cansado e não
treinado combatente.
Mas um flash
mudou sua sorte. De longe, um brilho azul muito intenso iluminou o local em que
combatiam – um brilho que Juliano já conhecia, mas agora muito mais forte; a
momentânea distração que afetou o hábil espadachim francês foi suficiente para
Juliano estocar-lhe no baixo-ventre. Seu adversário, como que refeito do susto,
imediatamente reagiu causando-lhe um profundo corte no rosto, antes que Juliano
pudesse furá-lo mais uma vez, agora com sua outra espada.
Recuando,
o mergulhador soltou uma das espadas para apalpar sua ferida; o francês, arrancando
forças sabe-se lá de onde, tentou ainda avançar contra seu oponente, mas viu-se
impossibilitado pela dor que provavelmente era causada pela perfuração de sua
bexiga; tombou ao chão.
Respirando
com dificuldade, exausto e empapado do rublo fluído vital, somente agora
Juliano percebera que o corte em seu antebraço vertera muito sangue, e o fluxo
ainda não estancara. Voltando a atenção para seus companheiros caídos, recuou averiguando
e confirmando a morte de todos eles, enquanto tornava para a posição em que
deixara o velho.
Após
alguns minutos de trôpega marcha, chegou à moita onde deixara o pajé.
Seus
olhos cansados e mudos mais uma vez se cruzaram; um inesperado abraço fez com
que Juliano largasse as lâminas escuras de sangue coagulado e quedasse em
espantado silêncio. Soltando-o, o velho abriu a boca, donde imediatamente
explodiu o clarão azul. O sagaz pajé escondera a pedra, todo aquele tempo,
dentro de sua boca, que por sinal jamais se abrira até então. Por isso Juliano
não a encontrara, quando da libertação do velho e dos demais.
Apanhando
a concha rutilante numa das mãos, o ancião agachou-se, como que iluminando o solo.
Apanhando com a outra mão um graveto, traçou um pequeno risco no chão. A partir
deste, traçou diversos outros riscos, como se fossem galhos de uma grande
árvore. Apontando então para o primeiro risco que fizera, levou o dedo em
direção ao próprio peito, como dando a entender que aquele risco o representava;
levando o dedo então a um dos últimos “ramos” daquela grande árvore, apontou
para Juliano. Em seguida levantou-se, abaixou a cabeça como que em cumprimento,
e depositou a pedra nas mãos do mergulhador.
Após ou
apesar do baque daquela estranha comunicação, Juliano acreditou, mesmo contra o
improvável, compreender o que o velho tentara explicar. Talvez Juliano fosse um
descendente daquele ancião; sim, um descendente de quase quinze gerações
posteriores. Mas, como?!!! E ainda que o fosse, o que aquele pajé, velho
antepassado do mergulhador, poderia saber sobre o tempo e suas singularidades? Como
ele pudera trazê-lo até ali? E para quê? Um tal poder, magnífico, seria usado
para levar a ele e a seus companheiros até ali, apenas para libertar aqueles
índios e para morrer? Uma tão incompreensível viagem no tempo, por tão pouco? –
pensava o historiador enquanto segurava a concha.
Antes que
pudesse tentar, por sinais ou como fosse, indagar ao seu “antepassado” como
utilizar a concha para retornar ao seu ponto de origem, pois ele a empunhara e
nada acontecera, o idoso apontou para a direção de onde Juliano e seus
companheiros vieram, onde haviam encontrado a concha, que por sinal era a mesma
direção donde parecia que o sol, que já dava seus primeiros sinais, iria
nascer.
Sem poder
dizer palavra, sequer para expressar sua revolta contra a arbitrariedade
daquela situação que custara a vida de seus companheiros, sequer para perguntar
que tipo de poder mágico era aquele, Juliano, confuso e sentindo, somente
agora, os humores do terror, pôs-se a correr.
Segurando
firme a pequena concha anil, correndo em desespero buscando como que acordar, ainda
sangrando, Juliano pôde ver, sob um promontório, os demais indígenas que
ajudara a libertar – crianças, mulheres e idosos –,
observando-o em silêncio, enquanto ele avançava na direção donde nasce o sol.
t
NOTAS:
O Rio de
Janeiro sofreu dois ataques corsários consecutivos, no século XVIII. Em 1710,
uma tentativa capitaneada pelo pirata Jean-François Duclerc foi rechaçada pelo
fogo coordenado das fortalezas que margeavam a barra da Baía. Os portugueses
haviam sido providencialmente avisados da chegada dos piratas. O que não
aconteceu no ano seguinte, em 1711, quando uma maior armada (tendo quase o
triplo de navios da anterior), aproveitando-se da bruma da manhã e do fato de
parte dos fortes estavam desguarnecidos, penetrou ousadamente na Guanabara,
venceu suas defesas e saqueou durante dois meses a cidade, tendo boa parte da
população fugido para o interior. Somente após receberem resgate, deixaram a
cidade. Seu chefe era o pirata e aventureiro francês René Duguay-Trouin.
Quase
dois séculos antes, quando franceses sob o comando de Vilegagnon se aliaram a índios
tamoios no domínio da Baía de Guanabara (onde fora fundada a colônia francesa
denominada França Antártica), o cacique temiminó Araribóia auxiliou os
portugueses na expulsão dos conquistadores franceses e também dos tamoios,
tribo inimiga da sua, em 1567. Como recompensa, recebeu as terras onde fundou
Niterói.
O Forte de
São Domingos do Gragoatá foi originalmente construído em volta de uma grande
pedra, que em tempo posterior foi cortada para a abertura de uma estrada,
margeando a costa. Disso decorre a diferença entre o forte conhecido pelos
mergulhadores, e o que encontraram no “passado”.
A região
que margeia o forte era constituída por uma longa linha de praia; aterramentos
posteriores diminuíram essa linha, mas deram espaço para a expansão do centro niteroiense,
e para construções tais como os prédios do campus Gragoatá da UFF (Universidade
Federal Fluminense).
Este conto faz parte do livro Fabulário Índigo. Disponível em formato impresso (aqui) e e-book (pela Amazon, aqui).