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quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Tenho tempo, Senhor!, um texto de Michel Quoist



Tenho tempo, Senhor!

 

Saí, Senhor.

Lá fora os homens saíram.

Iam. Vinham. Andavam. Corriam.

As bicicletas corriam. Os automóveis corriam. Os caminhões corriam.

A rua corria, a cidade corria, todo o mundo corria.

Corriam todos, para não perder tempo: corriam no encalço do tempo, para recuperar o tempo, para ganhar tempo.

Até logo, doutor, desculpe-me, não tenho tempo.

Passarei outra vez, não posso esperar mais - não tenho tempo.

Termino aqui esta carta, pois não tenho tempo.

Queria tanto te ajudar, mas não tenho tempo.

Não posso aceitar por falta de tempo.

Não posso refletir, nem ler... não tenho tempo.

Compreendes, Senhor, eles não têm tempo.

A criança está brincando, não tem tempo, agora mesmo... mais tarde...  

O estudante tem seus deveres a fazer, não tem tempo... mais tarde...

O universitário tem lá suas aulas, e tanto, tanto trabalho que não tem tempo... mais tarde...

O rapaz pratica esporte, não tem tempo... mais tarde...

O que casou há pouco, tem sua casa, deve organizá-la, não tem tempo... mais tarde...

O pai de família tem seus filhos, não tem tempo... mais tarde...

Os avós têm seus netos, não têm tempo... mais tarde... estão doentes.

Precisam tratar-se... não têm tempo... mais tarde...

Tarde demais, não têm tempo.

Assim correm todos os homens atrás do tempo, Senhor: apressados, atropelados, sobrecarregados, enlouquecidos, assoberbados...

Nunca chegam, falta-Ihes tempo.

Apesar de todos os esforços, falta-lhes tempo.

Falta-lhes mesmo muito tempo. Com certeza, Senhor, erraste os cálculos.

Há um engano geral: horas curtas demais; dias curtos demais; vidas curtas demais. Nesta noite eu não te peço, Senhor, o tempo de fazer isto e depois aquilo.

Peço-te a graça de fazer, conscienciosamente, no tempo que me dás, o que queres que eu faça.


sábado, 11 de dezembro de 2021

O ÚLTIMO SALTO, conto de Sammis Reachers

  


O ÚLTIMO SALTO

 

Foi duma ardência que nunca senti. Me rasgando a garganta. Sentia como o líquido ia, a um tempo, queimando e como que fazendo inchar, expandir-se, tanto a extensão de minha língua quanto as paredes da minha garganta, traqueia... 10 ml de veneno daria conta, mas eu tomei 300ml, um belo copo.

Retornei como que de ressaca. E atrasado: havia já programado uma nova morte e esta fora gestada por um mês. Custou dinheiro, tempo perdido com instrutores. O avião decolaria às 10h00. Saí do IML e peguei o primeiro ônibus.

Conheço mais IMLs do que pregadores itinerantes conhecem púlpitos de igrejas de onde vão arrancar seu ganha-pão.

Lembro-me sempre não da primeira, mas da segunda vez em que morri. Acreditei que sonhava: ainda era usuário das mesmas drogas que me mataram da primeira vez.

Na primeira, afinal, não soube sequer que havia morrido. Só me lembro de sentar-me, muito chapado, na cadeira do fundo de um ônibus, e começar a tremer, mas sem sentir frio. Acordei numa maca fria de um hospital, coberto com um lençol. Era madrugada: levantei-me e saí. Alguém detrás de um balcão, sonolento, esboçou um “Ei! Ei!”. Sonolento, creio que não ouvi.

Estava muito grogue e achava que era efeito posterior da aparente overdose que me jogara naquela maca. Ou talvez de alguma medicação. Só com o tempo e outras mortes fui perceber que sempre despertava com aquele tipo de zonzeira. Era a vida engrenando as marchas.

Curiosa a minha hipervida, não? Mas a coisa toda é simples: sou um homem que não consegue permanecer morto. Sou sempre expelido pela Morte de volta à vida. Escarrado. Não sei o motivo. Até onde eu sei, não sou vítima de nenhuma maldição, artefato místico, genética alienígena, experiência científica. Estar preso numa grande matrix, num programa simulador de realidade, claro, é uma possibilidade. Para todos nós, afinal.

Nunca utilizei meu “poder” para trazer qualquer benefício para ninguém. Creio que nem mesmo para mim. Era um drogado já com certa inclinação suicida, e ao descobrir tal dom ou maldição tudo o que fiz foi curtir, curtir ao máximo o que, ainda creio, estava vedado a qualquer outro homem: mais que sofrer, saborear a morte. Pisoteá-la, ela a tão cheia de botas.

Passei simples e sistematicamente a suicidar-me das mais diversas e criativas maneiras que me ocorriam.

Mas, e como é estar morto?, você deve estar perguntando-se. São muitas mortes, e variadas as experiências, e múltiplas as respostas. Vezes houve em que, defunto meu corpo, só vi escuridão e silêncio. Noutras, ouvi vozes, algumas conhecidas me chamando a esmo, noutras vezes gritos de dor. Vi a luz em forma de túnel. Vi a área em torno ao meu corpo, pessoas observando-o, tentando me reanimar.

Em Uganda fui estraçalhado por um leão e fiquei horas (eu ou meu espírito? Na verdade sempre meu espírito e sempre eu, pois somos espíritos, e não corpos) observando meu corpo mutilado, abandonado pelo jovem leão após se ter saciado. Quando hienas se aproximaram, meu meio corpo foi salvo por guardas florestais. De repente senti como que se lançado num torvelinho, um rodopiar do vento que aumentava sua força e girava meu espírito como uma cueca numa máquina de lavar. Despertei ensacado no jipe que levava meu corpo para a capital do país. Eu poderia relatar outras trinta experiências assim.

Você já pisou num chiclete? Aquela sensação, meio nojenta e noutra metade angustiosa, de perceber o chiclete esticando-se indefinidamente junto com seu calçado, quando este se levanta? Assim ocorre com o espírito. Ele desprende-se do corpo como um chiclete, esticando-se, grudento.

Sinto falta da sensação do desprendimento, imensa saudade de morrer. Desta única vez, ao menos, por um bom motivo.

Hoje estou preso a um corpo imóvel, o qual não posso matar. Escrevo este relato apenas com os olhos: utilizo um programa criado especialmente para pessoas em situação como a minha, tetraplégicos. Essas quase três páginas que você acabou de ler me custaram dias de trabalho, olhares e piscadelas para os sensores do monitor que me causam uma dor de cabeça terrível. Minha última aventura kamikaze deu errado, errado pois... sobrevivi. Em meia vida: O acidente lesionou minha coluna cervical, e aqui estou.

Nunca vi Deus, anjos ou demônios em minhas muitas mortes, ou nesses períodos que passo fisicamente “morto”, pois quem sou eu para saber se isso é mesmo a morte? Mas, após dois anos aqui, prisioneiro neste corpo, eu que me julgava e porventura fui o mais livre dos homens, um anárquico super-homem, viciado no próprio poder, no próprio ego, desisti de teimar. Em lágrimas sem ter quem as secasse, lembrei das conversas – perdão, das audições – com dona Solange, missionária capelã que semanalmente vem até esta ala do hospital e conversa conosco. Eu a ouvia, mais interessado em simplesmente ouvir alguém do que em ouvir o que ela estava falando.

Me lembrei de suas palavras, e sem palavras gritei o mais alto que pude por aquele Deus de quem ela fala tão feliz, esse Jesus que tanta luz e confusão trouxe ao mundo. Gritei mentalmente, gritei e gritei e chorei – um dia, dias, qual a diferença? – imóvel como um cadáver em meu corpo paralisado, até que senti sua mão em meu ombro. Senti, senti mesmo não tendo nenhuma sensação do pescoço para baixo.

- Pare de gritar.

Fiquei em “silêncio”, apenas chorando, confuso de raiva e espanto e vergonha. Raiva pela fraqueza, vergonha de chegar àquele ponto, àquele estado de miserabilidade, e espanto por ele estar ali.

- Você quer respostas, mas eu quero saber se você está realmente cansado.

- Estou, Senhor. Não aguento mais essa prisão, e nem mesmo aquele morrer e ressuscitar que me trouxe até aqui.

- Dura sorte lhe coube, pois dura sorte é sair daqui e para cá voltar, sem o beneplácito do Pai. Tudo o que você fez foi acumular pecados, e inutilizar vez após vez tudo o que eu lhe dei. Mas, se quer e se crê, um pouco mais de tempo e morrerá, e ressuscitará a ressurreição verdadeira, para nunca mais morrer, num novo corpo feito de paz e para a paz criado. Um corpo que você não poderá e nem quererá despedaçar.

Confesso que eu, habitante do inusitado, estava confuso como jamais estivera. Ideias de que aquilo era só mais um sonho ou fruto de um transe medicamentoso me solapavam sem trégua. Mas reagrupei a coragem que me fazia experimentar a morte vez após vez, e com coragem fui para o tudo ou nada, como quem salta sobre um abismo, pois sentia acima de tudo que aquele momento era um “tudo ou nada” como jamais experienciara em minha estendida existência.

- Eu quero, Senhor Jesus! Eu quero...

Fechei os olhos para que as lágrimas que embaciavam minhas órbitas fossem expelidas e escorressem, e ao abri-los já não havia ninguém lá.

 

Continuo preso; vezes há em que amaldiçoo minha existência, ou o mal uso que fiz da singularidade, buscando a morte apenas por curtição, desperdiçando o que era um verdadeiro superpoder.

Nunca mais o vi, embora o chame constantemente, e por vezes minha fé naquele dia e naquelas palavras titubeia. Mas lancei-me no tudo ou nada e, com a resignação dos prisioneiros, espero. Entendi o que dona Solange dizia tantas vezes, “é preciso ter fé, e basta ter fé”. Minha existência kamikaze me permitiu entender que a fé é um salto no escuro, que pega impulso no escuro, e mira adiante, no escuro, para alcançar além do escuro.

 Sammis Reachers

Publicado originalmente no Jornal Daki.


Este conto faz parte do livro Fabulário Índigo. Disponível em formato impresso (aqui) e e-book (pela Amazon, aqui).


terça-feira, 16 de novembro de 2021

Renato Cascão & Sammy Maluco - Uma dupla do balacobaco: Livro gratuito para download

 

Nesta obra, memória e humor se entrelaçam para narrar divertidíssimas histórias da infância de dois jovens criados num subúrbio de São Gonçalo (município da região metropolitana do Rio de Janeiro), nos duros anos da década de 80. Relatos de perrengues e peripécias, marcados pela humanidade, o bom-humor e a irreverência da prosa de Sammis Reachers, dão conta de duas pequenas vidas que poderiam ser as vidas de quaisquer moleques daquele tempo, dada sua universalidade. 

O livro é ilustrado e possui 114 págs.

O livro em pdf pode ser baixado GRATUITAMENTE, clicando AQUI.


O livro também está disponível na versão impressa, ao preço de 25 reais (o valor já inclui o frete). Caso queira adquirir, me envie um e-mail o quanto antes, pois a tiragem inicial foi bem pequena:  sreachers@gmail.com

O lançamento do livro impresso acontecerá oficialmente durante a terceira edição do FLISGO, o Festival Literário de São Gonçalo (dia 21/11, às 14h). O evento reunirá expositores literários, atividades e atrações culturais diversas, e irá dos dias 19 a 22, das 10h às 19h. O endereço é o Conjunto Residencial Venda da Cruz – Minha Casa Minha Vida – Antigo 3º. Batalhão de Infantaria, Venda da Cruz, São Gonçalo, RJ



sexta-feira, 12 de novembro de 2021

FLISGO - Festival Literário de São Gonçalo chega à sua terceira edição

 

Durante os dias 19 a 22 de novembro serei um dos participantes da terceira edição do FLISGO,  o Festival Literário de São Gonçalo. 

Organizada pelo ativista cultural Alberto Rodrigues, a FLISGO busca mobilizar a cultura gonçalense e dos municípios vizinhos, e dar espaço aos que militam pela nossa cultura, com amplo destaque para ações afirmativas e buscando a democratização da cultura ao facultar acesso aos bens culturais às camadas menos assistidas da população. 

Além dos expositores de livros, haverá diversas oficinas culturais, contação de histórias, música e muito mais. E o melhor: O evento é gratuito.

E mais: Após o evento presencial, em sequência haverá o evento online, com a transmissão de lives, saraus e oficinas.

Programação Presencial – 19 a 22 de novembro – De 10h às 19h / Totalmente Gratuito.

ENDEREÇO: Conjunto Residencial Venda da Cruz – Minha Casa Minha Vida – Antigo 3º. Batalhão de Infantaria, Venda da Cruz, São Gonçalo, RJ


Durante o evento, estarei expondo e comercializando meus livros Poemas da Guerra de InvernoRodorisos e Cartas e Retornos, e farei o lançamento de um novo livro, o misto de memórias e crônicas de humor Renato Cascão e Sammy Maluco: Uma dupla do balacobaco.

Em breve, postarei aqui mais novidades sobre o novo livro.


Abaixo, uma chamada em vídeo para o evento, bem como uma palinha sobre os livros que lá exporei.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Ao livro CARTAS E RETORNOS, um poema de Pedro Marcos Pereira Lima

 


CARTAS E RETORNOS

                           Para o poeta Sammis Reachers

 

as cartas estão dadas –

com que sorte lançadas?

não vieram das garrafas ao mar

não foram aos meus pés jogadas

por um mensageiro ofegante moribundo

sobre seu cavalo rocinante

tendo atravessado o mundo

as cartas primeiras

as cartas estrangeiras

cartas de um correio dos céus

cartas chegadas

de um carteiro assassinado

encontradas após anos perdidas

nas catacumbas

de um sonho sepultado

no coração de um escriba apartado

cartas extraviadas

cartas devol/vidas

cartas ressuscitadas na escrita inviolada

cartas que me foram agora reveladas

cartas abertas

me falam de uma carta eterna

carta que pede

meu retorno urgente

do que me resta

ainda sobrevivente

retorna –

Vida ainda te espera

naquela tarde ruída

na mesma porteira caída


onde a deixaste

dizendo que irias logo ali

buscar a madeira para consertar

é a madeira que te escreve –

estou pronta cortada medida

aguardando seu retorno

esperando a partida

para ir no seu ombro

eu pouco ou nada peso

sou muito leve

retorna –

nossa porteira será uma janela erguida

onde Vida mais feliz que nunca

te verá chegar com olhos de primavera

nossa porteira terá uma cancela

sem ferrolho que se abrirá de longe

só com o piscar do olho

retorna –

veja atrás dessa missiva

o mapa para seu retorno

ali é dada

a estrada viva

que terás que tomar.


VIDA

VIDA

VIDAVIDAVIDA

VIDAVIDAVIDA

VIDA

VIDA

VIDA

VIDA


Pedro Marcos Pereira Lima


segunda-feira, 11 de outubro de 2021

JESUS, poema de Junquilho Lourival

 


JESUS

Senhor, ao teu desejo elevo a taça
Transbordante de fel do meu tormento!
Tua vontade sobre mim se faça
E seja o teu amor meu pensamento!

Que a minha fé, Jesus, não se desfaça,
Das perversões ante o deslumbramento!
Por mim passe a maldade como passa
O grão de poeira no fragor do vento!

Mártir da Cruz, ó símbolo da Mágoa!
Dá-me a cumprir sereno a minha pena
— Chagado o corpo e os olhos rasos d’água.

E faze que esta boca humilde e boa
Nunca maldiga ao que disser — Condena!
Mas beije os pés ao que disser — Perdoa!


Via Gaveta do Ivo.


domingo, 3 de outubro de 2021

300 Frases para o Dia da Batalha: Uma antologia de citações inspiradoras

De uma batalha campal à luta por uma promoção ou um novo emprego; de uma situação perigosa em que as circunstâncias o lançaram à solicitação, à pessoa amada, de um primeiro beijo, cada um sabe – ou logo descobrirá – quais são as batalhas de sua vida. Desafiados somos todos os dias, por situações procuradas ou inesperadas, e necessário é que nos mostremos fortes diante dos desafios e adversidades.

Aqui, neste breve volume, reunimos uma poderosa coleção de frases de inspiração e sabedoria, que falam sobre coragem e heroísmo, prudência e resiliência, estratégia, ousadia e iniciativa para enfrentarmos o dia da batalha.

terça-feira, 21 de setembro de 2021

A Concha Azul - Mistério, Aventura e Pirataria na Baía de Guanabara, um conto de Sammis Reachers

 


Um conto de fantasia histórica e mistério tendo por pano de fundo a Baía de Guanabara dos séculos XXI e XVIII. Uma concha enigmática arroja três mergulhadores da Petrobrás a séculos no passado - para uma aventura que lhes custará praticamente tudo.

Transformei este conto num pequenino e-book, de vinte páginas. Você pode baixá-lo (em formato PDF) pelo Google Drive, CLICANDO AQUI.

Ou pode ler o conto aqui abaixo.


A Concha Azul

 

Mistério e aventura

na Baía de Guanabara

Os oito mil reais mensais auferidos por seu trabalho como mergulhador da Petrobrás permitiam a Juliano oferecer uma muito cômoda vida à sua família. A profissão de mergulhador, para além disso, o levara a conhecer quase meio mundo. O regime de trabalho, por plantões, lhe permitia muito tempo livre, que dedicara ao seu crescimento pessoal, com viagens e duas graduações – em História e Filosofia – que ele fizera apenas pelo prazer da realização intelectual.

Nos últimos tempos Juliano estava à frente de uma pequena equipe especializada em realizar sondagens e pequenos reparos em plataformas petrolíferas, mas já não indo até elas: elas é que “vinham” a eles. A Petrobrás passara a ancorar plataformas petrolíferas a serem consertadas ou aprimoradas dentro da Baía de Guanabara – dita Iguaá-Mbara pelos primeiros índios que habitaram seu entorno – o que permitia aos mergulhadores daquela equipe privilegiada não ter que viajar constantemente.

Numa dessas missões, a equipe se dirigira para o litoral da cidade de Niterói, um dos sete municípios que compõem o circuito litorâneo da Baía. A bordo de uma pequena lancha, amparados por uma equipe de três tripulantes e um engenheiro naval, os três mergulhadores submergiram próximo aos bairros niteroienses de Boa Viagem e Gragoatá, local onde estava fundeada a plataforma que seria avaliada.

Os mergulhadores iniciaram as inspeções de rotina, observando coluna por coluna de sustentação dos flutuadores daquela imensa estrutura metálica semissubmersível. Foi quando, na terceira das colunas vistoriadas, o mergulhador experimentado que encabeçava a equipe viu aquela concha. Azul rutilante entre o caos calcário das cracas e algas, aquilo era uma impossibilidade mineralógica intuível até por um leigo. Era mesmo como se aquela concha, dentre a profusão turva de dejetos, pulsasse. Juliano fez sinal para Edvaldo, que carregava sua máquina fotográfica padrão. Deixando seu afazer, aproximou-se e fotografou a concha. Fez um sinal de OK com os dedos para Juliano, que sorriu para si dentro de seu snorkel. Belíssima foto.

Enquanto Juliano e Edvaldo se comunicavam por sinais, o terceiro membro da equipe, Mauro, que fora alertado pelo flash da máquina fotográfica, se aproximou da esplendorosa carcaça do crustáceo, e puxou-a.

Não se saberá jamais se foi o simples toque naquele objeto, ou se o fato dele ter sido arrancado da cracaria o que deflagrara um tipo de gatilho: um clarão azul inundou o entorno, fremente como uma onda de choque, adensando por um instante a água com seu pulso, cegando e atordoando os três mergulhadores. Após dissipar-se, não havia mais turbidez maculando a água, agora límpida. Junto com a poeirenta fuligem marinha, desaparecera a própria plataforma.

- O que você fez? – gritou Juliano pelo rádio. Mauro, desnorteado e com a concha nas mãos, não podia falar, e com a mão livre fez sinal de espalmá-la na horizontal, como quem diz “não sei!”

Edvaldo, após olhar em todas as direções, comunicou o sumiço da plataforma.

- A plataforma sumiu! Será que a explosão nos lançou para longe dela?

Mas aquela explosão fora mais de luz do que de ondas de choque. Juliano instintivamente apertou com mais força a coronha de seu arpão.

A tentativa de comunicação via rádio com a superfície redundara apenas em silêncio. Sequer as mudanças de frequência do rádio davam algum sinal. Juliano, líder da equipe, fez sinal para o grupo emergir.

Além do espelho d’água, uma paisagem arcana, feita de azuis e matas intactas, os saudara. Nenhum navio, nenhum edifício. Um horror frágil e desconcertante tomou conta dos mergulhadores, emudecendo-os.

Ao longe, divisaram a luz de uma fogueira, que ardia apesar do sol que ainda brilhava naquele final de tarde. Juliano fez sinal para que eles avançassem para a praia.

Mauro, menos experiente, não se conteve:

– Juliano, o que está acontecendo? Fomos jogados pra longe? Cara, olhe para o outro lado da baía!!!

Somente então, alguns minutos depois de emergirem da deflagração daquela singularidade que os atordoara, puderam divisar à distância o contorno do Pão de Açúcar. Se não havia respostas, tampouco dúvidas restavam: estavam no mesmo lugar em que haviam mergulhado, às margens da praia de Gragoatá, em Niterói. Mas o contorno da orla estava diferente: a praia era muito mais longa, pois os imensos aterros que expandiram a região do centro de Niterói, mar adentro, inexistiam; o pequeno Forte do Gragoatá, única construção visível naquelas margens verdejantes, estava algo diferente, derramado por sobre uma grande pedra. Nenhuma sentinela ou vivalma que fosse era visível por sobre as amuradas. O que era tudo aquilo?

Do outro lado da baía de Guanabara, o que fora ou seria um dia o Rio de Janeiro refulgia em seu esplendor de rocha e mata. Praticamente nenhum prédio, nenhum construto humano era visível.

Um breve diálogo de horror se estabeleceu e morreu entre os três mergulhadores. Se não havia respostas, havia a fogueira, sinal humano, e onde há homens há esclarecimentos – ou ao menos essa era a intuição que lhes animava.

Ao aproximarem-se um quilômetro mais daquela grande fogueira, notaram figuras humanas em seu derredor. Avançando agora em cautela, logo perceberam que eram indígenas. Índios aprisionados. Em torno de 15 indivíduos, dentre aparentemente homens, mulheres e crianças, estavam de pé, e amarrados com uma mesma e longa corda, que lhes cruzava os pulsos e pescoços, formando uma sinistra corrente humana.

O relevo sobre o qual os mergulhadores avançavam margeava em curva a linha do litoral. A princípio se perguntaram o porquê de os aprisionados não se moverem, ou buscarem escapar. Mas ao seguir sua marcha em curva, logo receberam, dum único golpe, as respostas àquelas dúvidas. A alguns metros do grupo indígena que circundava a grande fogueira, seis indivíduos brancos faziam guarda, quatro em pé, dois sentados, aparentemente manuseando seus armamentos. E, na ponta de seu campo visual, viram um grande navio, velha caravela de escura madeira.

Os três abrigaram-se sob a capa de um arbusto e debateram sobre o que fazer. Edvaldo falou que estava claro que haviam viajado no tempo. Mauro apenas ria e chorava de nervoso. Juliano, o silencioso líder, soltou alguns resmungos e disse que poderiam estar talvez numa outra dimensão. Falou também o que deveriam fazer: Esconder o máximo possível de apetrechos e trajes que causassem estranhamento naquelas pessoas, e avançar até elas, contando alguma história sobre serem de algum povo do interior, fruto talvez de uma incursão de algum desbravador português. Sim, pois certamente aqueles eram portugueses; e estranhariam o sotaque dos três desterrados do tempo ou do espaço multidimensional.

Ao aproximarem-se ainda mais, sempre às ocultas, o experimentado Juliano julgou ouvir alguns gritos. Observando, percebeu que um dos brancos gritava ordens a um outro, fora do campo de visão, talvez vindo da direção em que estava fundeado o navio deles. Uma nova pausa, enquanto ouvia atento, foi seguida de um novo descarte de impropérios e palavrões. Juliano ouvira bem diversas das palavras gritadas, mas nenhuma delas soava em português. Se não compreendeu perfeitamente o que era falado, ao menos a língua ficou logo clara, a velha língua dos francos. Eram franceses aqueles captores de indígenas. O líder da equipe falava algo da língua, de quando trabalhara na Líbia, no início de sua carreira como mergulhador. Mas havia algo diferente dos diversos sotaques franceses com que lidara naqueles quase nova anos de trabalho: aqueles indivíduos eram falantes de um francês acobreado, crioulo, um francês calcinado pela maresia.

O mergulhador soltou mais alguns palavrões.

Na verdade, era o historiador nele quem vomitava impropérios, pois, passado o primeiro susto, um horror mais calmo se estabeleceu, uma fagulha de compreensão.

Juliano se graduara em História e era bom leitor, mas não um especialista naquele período. No entanto, as vestimentas daqueles prováveis franceses, a forma com que caçoavam uns dos outros, enquanto bebiam o líquido rubro de algumas garrafas, possivelmente algum destilado, levou Juliano a sugerir que se tratavam na verdade de piratas.

Nesse caso, o risco de uma aproximação era muito maior. Bem fariam em dar meia volta e procurar alguma povoação, ou simplesmente tentar a sobrevivência em meio à mata, pois a noite já descia seu véu negro sobre a paisagem.

Juliano bem sabia que a Baía de Guanabara é cercada por fortes. O Forte do Gragoatá, embora um pouco diferente do que ele conhecia, ali estava como prova. Eram o instrumento de defesa – nem sempre efetivo – contra incursões de conquistadores ou corsários.

Tudo de que ele se lembrava era que aconteceram ao menos duas grandes incursões de corsários franceses seguidas na Guanabara, a primeira sendo rechaçada, o que induziu o governo colonial a erro acreditando que as fortalezas que guarneciam a entrada ou barra da baía eram inexpugnáveis; no ano seguinte, uma armada mais poderosa em homens e em armas, e chefiada por um pirata de maiores capacidades, de cujo maldito nome Juliano não conseguia se lembrar, apanhou a cidade de calças arriadas, e permaneceu aqui certo tempo, só saindo após obter duro resgate.

Só agora ocorria ao historiador que nada aprendera sobre alguma eventual chegada dos franceses à Vila Real da Praia Grande, a que hoje é Niterói. Mas seria natural que, em busca de saques e de debelar focos de resistência como aquele forte, eles chegassem ao outro lado da Baía, sendo tão próximo da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Seriam assim aqueles lobos do mar membros da armada que tomara a cidade do Rio?

Enquanto confabulavam, Juliano mantinha o olhar fixo na movimentação daquela clareira. Foi quando percebeu que um dos indígenas, aparentemente um idoso, devido aos seus longos cabelos brancos, estava virado na direção em que eles se encontravam, e parecia mesmo observar fixamente aquela posição. Mesmo a boa distância, esse breve momento de cruzamento de olhares fez o velho, que tinha como os demais as duas mãos amarradas à frente de seu corpo, abrir uma de suas mãos, de onde deixou escapar um fulgor azul de grande singularidade. Era a concha! A concha que os jogara naquele pesadelo brilhava nas mãos do índio que dera as costas aos franceses e parecia ter certeza de que alguém estava ali, naquela mata, observando-os.

Havia algo familiar no olhar daquele ancião. E havia algo de sinistro no fato dele não suspender os olhos que pesavam sem cessar sobre a figura de Juliano – e como que apenas sobre a dele.

Agora o mistério ganhava novas cores; melhor, uma única e fulminante cor azul, uma concha ou gema ou olho-do-diabo ou que diabos fosse que tinha ou precisava ter a resposta. A explicação para tudo aquilo poderia esperar, mesmo que pelas eternidades. Mas era preciso apossar-se da concha; ela os lançara naquele sonho-pesadelo, e talvez fosse a porta de saída. No entanto, para isso talvez fosse necessário não apenas aproximar-se mais do grupo de índios, mas provavelmente libertá-los – pois o velho exibira a concha como um chamariz –, o que aconteceria não sem luta contra aquele corpo de piratas, que eles sequer sabiam quantos eram. O que quer que fosse toda aquela desgraça, a maldita concha era o graal a ser reconquistado.

Edvaldo, exausto, propôs que esperassem o dia seguinte e o andamento da situação, para analisar uma melhor maneira de proceder. Mas a questão era clara para Juliano: eles estavam favoravelmente próximos do pequeno acampamento pirata, e a noite já caíra. Era preciso se aproximar e soltar os índios, e apanhar a concha daquele estranho personagem, e se necessário fosse, dar cabo daquelas brancas ratazanas do mar.

Juliano perguntou se algum de seus companheiros já havia matado alguém. Espantadas, cabeças balançaram-se lateralmente em resposta. De toda forma, ambos foram militares antes de optarem pela mais rentável profissão de mergulhadores civis da Petrobrás. Ao menos possuíam treinamento militar.

*    *      *

 

O trio esperou por horas até que a maior parte dos franceses de guarda adormecesse.

Ao perceber a aproximação do grupo, o velho, como quem já aguardasse aquele movimento, cutucou alguns dos outros índios que lhe estavam próximos, acordando-os. Com sua faca de mergulho Morakniv, por acaso comprada numa loja de militaria nesta mesma futura cidade de Niterói, Juliano cortou primeiro as cordas de seu pulso. Rapidamente outros foram desenlaçando-se.

Enquanto isso, os dois vigias que montavam guarda mais próximos aos indígenas foram alcançados pelos demais mergulhadores. Edvaldo não hesitou em cortar, mesmo desajeitado, a garganta do francês, adormecido sobre uma pedra de granito.

Foi o jovem Mauro, mais uma vez, quem pôs tudo a perder. Ao aproximar a faca da garganta do embriagado francês, Mauro cometera o erro de puxar primeiro sua cabeça, agarrando-o pela farta cabeleira, como se desejando melhor expor o alvo de sua navalhada. Aquilo foi o suficiente para o pirata despertar em susto e em ação, dirigindo um soco para trás, que, embora pegasse de raspão no rosto de Mauro, lhe atrapalhou o movimento de corte. O que se seguiu foi uma luta corporal, barulhenta pelos gritos do francês.

Juliano foi pego de surpresa pela gritaria; estava absorto e algo desesperado não tanto em libertar os demais indígenas, mas em inquirir, mesmo sem palavras, ao velho índio que aparentemente, ao abrir as mãos, não mostrava mais a maldita concha. Outros gritos em francês se fizeram ouvir à distância. Agora era tarde para dar atenção ao velho. Gritando, Juliano alertou Edvaldo:

– Apanhe a espada do francês e vá ajudar Mauro! Depois recuem!

De posse da gasta espada do corsário que abatera, afoito e tremendo pelo desespero da situação, Edvaldo lançou-se sobre os dois corpos que se engalfinhavam na escuridão, atravessando a barriga do francês bem à direita de seu umbigo, mas causando um pequeno talho num dos braços de Mauro.

O primeiro clarão espocou pela noite da Guanabara, detonado a partir do bacamarte de uma sentinela dos sicários.

Dando a mão ao igualmente trêmulo Mauro, Edvaldo o puxou para junto de si e ambos correram em desabalada carreira em direção a Juliano e alguns indígenas. A maioria dos quais havia fugido, mas sete deles permaneceram e, apanhando paus e pedras, faziam menção de oferecer combate aos seus captores.

No entanto, em campo aberto e contra o fogo de bacamartes, a causa estaria perdida. Assim, Juliano, tocando o idoso e o forte índio de meia idade que parecia ser o líder daqueles que ficaram, apontou para um amontoado de arbustos a alguma distância, justamente de onde ele e seus companheiros vieram, antes de iniciar o assalto ao acampamento.

Agora eram já diversos os franceses que vinham em socorro de seus companheiros. Da mata, sem condições, pela geografia do lugar, de prosseguir na fuga, os fugitivos espreitavam o avanço dos franceses.

Nesse entrevero, Juliano, sempre perseguido pelo olhar severo do velho, que talvez fosse um pajé, pelo diferenciado de plumas que tinha enfeixado em pulseiras em seus braços, apanhou a mão do ancião e fez o movimento que o mesmo fizera antes, exibindo a concha à distância. Em resposta, o velho, que não emitia palavra, balançou a cabeça negativamente, enquanto Juliano se enchia de fúria. Num rompante, garroteou o pescoço do velho com uma de suas fortes mãos, enquanto seus olhos se cruzavam, uma vez mais, em silêncio. O velho não tentou se desvencilhar, e manteve sua expressão impassível, como que em desafio. Mas, daquele olhar firme, porém cansado, um brilho diferente refletiu a suave luz da lua minguante que abraçava os céus daquela noite fantástica. Eram lágrimas.

Foi então que Juliano sentiu o maior dos desconcertos. Havia algo de familiar naquele olhar mudo. Familiar o bastante para o fazer afrouxar sua pegada, e por fim soltar o velho.

Em meio à confusão, uma outra ação precipitada pôs novamente tudo em risco: vendo a aproximação de dois franceses, que se achegavam à posição em que se acoitavam, três dos indígenas, ao invés de aguardarem uma maior proximidade, lançaram-se em ataque sobre a dupla, emitindo gritos de guerra. Dois deles atiraram pedras, uma das quais logrou atingir o ombro de um dos corsários, mas o golpe foi impotente para derrubá-lo ou tirá-lo de combate. Em resposta, os franceses dispararam suas garruchas, atingindo um dos atacantes. Sacando logo suas espadas, os navegantes habituados a sangue rapidamente perfuraram os dois indígenas da vanguarda, cujos paus foram impotentes para impedir os golpes fulminantes dos floretes.

Apanhados pela ação temerária dos índios, Mauro e Edvaldo lançaram-se em socorro aos companheiros. Uma batalha de floretes, paus e socos se seguiu; ao custo de mais uma vida indígena, e um belo corte na perna de Edvaldo, os piratas foram sobrepujados.

Mas agora sua posição estava descoberta; pelo menos quatro outros franceses avançavam sobre o grupo formado pelos dois mergulhadores e o indígena restante. Era tarde demais para recuos; Juliano despediu-se de entre as moitas em direção aos seus companheiros, ansioso por chegar a um dos corpos franceses – e a uma das espadas, pois tudo que portava era uma faca – antes da aproximação dos demais atacantes.

Por sorte, apenas um elemento dessa nova leva de piratas portava uma garrucha, que disparou a esmo, sem acertar ninguém. Juliano, alcançando um dos corpos, apanhou a espada e cerrou fileira, lâmina em punho, ao lado de Mauro e Edvaldo, como três desmazelados ou ao menos improvisados mosqueteiros. O índio que os acompanhava apanhou um pedaço de pau; outros dois indígenas que seguiram Juliano logo se juntaram ao corpo de resistentes, um deles apanhando também uma das espadas. O velho, débil demais para combater, ficara sob a cobertura das moitas.

A luta que se seguiu, talhada pela penumbra, foi marcada pelo despreparo dos mergulhadores no manejo da espada, o que foi suprido pela fúria dos indígenas, que lutavam com um furor surpreendente, como se fossem vikings ou guerreiros berserkers normandos. Corsários, indígenas e aqueles viajantes temporais, dimensionais ou egressos do sonho se engalfinharam num amontoado de faíscas, gritos e sangue.

Dos mergulhadores, o primeiro a tombar fora Edvaldo; sua barriga fora rasgada. Sentindo uma dor excruciante, caíra ao chão enquanto segurava tecidos pegajosos e quentes – suas vísceras. Impossibilitado de levantar-se, era pisoteado pelos combatentes, e enquanto o tempo transcorria ele se espantava, segundo a segundo, do fato de que ainda não morrera. Se era um sonho tudo aquilo, ele não devia ter acordado?

Apoiado por dois dos indígenas, que se atracaram a um dos franceses, Mauro conseguira desferir uma estocada certeira no rosto de seu oponente; mas a inexperiência em batalha o fizera baixar a guarda, acreditando estar vencido o inimigo. Avançando como um touro, mesmo tendo um dos índios agarrado em seu cangote, antes de tombar sem forças o ferido francês estocou de raspão o pescoço de Mauro, cujo sangue passou a jorrar. Empapado pelo sangue que mal podia divisar num momento em que nuvens cobriam a fraca luz da lua, Mauro cruzava finalmente a tênue linha vermelha que separa a sanidade da loucura.  Desnorteado e gritando palavras desconexas, pensava apenas em fugir. Retornar ao mar, mergulhar em busca daquela estranha concha, aquela que deflagrara o clarão. E foi o que fez: correu para a praia, correu em busca do mar que nunca esquece os seus. Seu sangue esvaía-se como petróleo ruim, fino, enquanto as águas já lineavam seus joelhos. “A concha, a concha!”, gritava enquanto misturava seu sangue com a água salgada; a concha que ele morreria antes de encontrar...

Ocupado em duelar contra o último dos franceses em pé, Juliano nada pôde fazer pelo amigo; enquanto mais dois franceses se aproximavam, nosso involuntário libertador de escravos contabilizava as baixas: seus dois companheiros aparentemente se haviam perdido; dos seis indígenas combatentes, apenas dois deles estavam ainda em pé, um deles amargando uma profunda ferida na costela, enquanto, armado com um florete, fazia cerco ao francês. Aproveitando o momento de pausa, enquanto os quatro combatentes se mediam, Juliano apanhou mais uma espada, ocupando agora suas duas mãos. Era preciso eliminar aquele francês antes que os outros chegassem ao teatro de batalha; imediatamente avançou contra seu oponente, sendo seguido pelos dois indígenas. Aproveitando-se das duas espadas, após o primeiro ataque, a título de distração, executou um movimento em forma de X, recebendo – como imaginara – o contra-ataque do francês, prendendo momentaneamente sua lâmina. O suficiente para um ataque do indígena, que, se errou seu golpe, ao menos distraiu o oponente o suficiente para que Juliano lhe apunhalasse no peito.

À distância, um dos franceses que acorriam em socorro de seus comparsas, armado com um bacamarte, ajoelhou-se para fazer pontaria e disparou. O instintivo grito de “abaixem-se” de Juliano não surtiu efeito algum sobre seus companheiros, falantes talvez de alguma língua do tronco tupi-guarani; um deles foi atingido. O outro dos franceses, armado de uma garrucha, seguia avançando, enquanto seu companheiro parecia estar já recarregando a arma.

Era o momento da verdade; apanhando as duas espadas numa única mão, Juliano arremeteu contra o francês, correndo à toda, no que foi seguido pelo índio que sobrevivera.

A certa distância, enquanto o francês tentava fazer pontaria enquanto corria, Juliano aproveitou sua mão livre – para isso a deixara vaga – para lançar sua faca de mergulho como um dardo em direção ao seu oponente. A faca acertou o gorducho pirata num dos braços, por sorte o que empunhava a garrucha. O francês a soltou, mas imediatamente se pôs a catá-la por entre as moitas. Antes que pudesse encontrá-la, Juliano já saltava sobre o sicário com suas duas espadas, atravessando-o em pontos paralelos, pouco abaixo do pescoço. O homem que sempre fora um bom aprendiz no que quer que se propusesse a fazer, demonstrava já uma insuspeita habilidade na antiga arte de retalhar carne humana.

Enquanto isso, o indígena avançara em direção ao outro pirata. O sicário finalizava a recarga de seu grande trabuco, enquanto o índio, como que cavalgando um corcel de puro ódio, gritava e corria a uma velocidade que pareceu a Juliano sobrenatural. Ao levantar a ponta da espada, como se fora uma lança, para atravessar o atirador agachado, foi freado pelo impacto das bolotas de ferro contra seu peito. Tombou a menos de cinquenta centímetros de seu oponente.

Agora era Juliano quem corria em direção ao atirador, que se levantara e, sacando sua espada, aguardava como que pacientemente a investida do mergulhador. A perícia daquele último corsário fez-se logo evidente; mesmo com uma única espada, defendia-se com certa facilidade dos ataques das duas espadas de Juliano. Em pouco tempo, dois talhos, um num braço, pouco abaixo do deltoide, e outro num antebraço, faziam Juliano sangrar.

A hiena do mar, até ali em silêncio, perguntou naquele seu estranho francês, quem era Juliano. O mergulhador, mesmo julgando compreender o teor da pergunta, nada respondera; seu oponente então fez a mesma pergunta, agora em espanhol. O jogo de esgrimas continuava, e a situação era desfavorável para nosso cansado e não treinado combatente.

Mas um flash mudou sua sorte. De longe, um brilho azul muito intenso iluminou o local em que combatiam – um brilho que Juliano já conhecia, mas agora muito mais forte; a momentânea distração que afetou o hábil espadachim francês foi suficiente para Juliano estocar-lhe no baixo-ventre. Seu adversário, como que refeito do susto, imediatamente reagiu causando-lhe um profundo corte no rosto, antes que Juliano pudesse furá-lo mais uma vez, agora com sua outra espada.

Recuando, o mergulhador soltou uma das espadas para apalpar sua ferida; o francês, arrancando forças sabe-se lá de onde, tentou ainda avançar contra seu oponente, mas viu-se impossibilitado pela dor que provavelmente era causada pela perfuração de sua bexiga; tombou ao chão.

Respirando com dificuldade, exausto e empapado do rublo fluído vital, somente agora Juliano percebera que o corte em seu antebraço vertera muito sangue, e o fluxo ainda não estancara. Voltando a atenção para seus companheiros caídos, recuou averiguando e confirmando a morte de todos eles, enquanto tornava para a posição em que deixara o velho.

Após alguns minutos de trôpega marcha, chegou à moita onde deixara o pajé.

Seus olhos cansados e mudos mais uma vez se cruzaram; um inesperado abraço fez com que Juliano largasse as lâminas escuras de sangue coagulado e quedasse em espantado silêncio. Soltando-o, o velho abriu a boca, donde imediatamente explodiu o clarão azul. O sagaz pajé escondera a pedra, todo aquele tempo, dentro de sua boca, que por sinal jamais se abrira até então. Por isso Juliano não a encontrara, quando da libertação do velho e dos demais.

Apanhando a concha rutilante numa das mãos, o ancião agachou-se, como que iluminando o solo. Apanhando com a outra mão um graveto, traçou um pequeno risco no chão. A partir deste, traçou diversos outros riscos, como se fossem galhos de uma grande árvore. Apontando então para o primeiro risco que fizera, levou o dedo em direção ao próprio peito, como dando a entender que aquele risco o representava; levando o dedo então a um dos últimos “ramos” daquela grande árvore, apontou para Juliano. Em seguida levantou-se, abaixou a cabeça como que em cumprimento, e depositou a pedra nas mãos do mergulhador.

Após ou apesar do baque daquela estranha comunicação, Juliano acreditou, mesmo contra o improvável, compreender o que o velho tentara explicar. Talvez Juliano fosse um descendente daquele ancião; sim, um descendente de quase quinze gerações posteriores. Mas, como?!!! E ainda que o fosse, o que aquele pajé, velho antepassado do mergulhador, poderia saber sobre o tempo e suas singularidades? Como ele pudera trazê-lo até ali? E para quê? Um tal poder, magnífico, seria usado para levar a ele e a seus companheiros até ali, apenas para libertar aqueles índios e para morrer? Uma tão incompreensível viagem no tempo, por tão pouco? – pensava o historiador enquanto segurava a concha.

Antes que pudesse tentar, por sinais ou como fosse, indagar ao seu “antepassado” como utilizar a concha para retornar ao seu ponto de origem, pois ele a empunhara e nada acontecera, o idoso apontou para a direção de onde Juliano e seus companheiros vieram, onde haviam encontrado a concha, que por sinal era a mesma direção donde parecia que o sol, que já dava seus primeiros sinais, iria nascer.

Sem poder dizer palavra, sequer para expressar sua revolta contra a arbitrariedade daquela situação que custara a vida de seus companheiros, sequer para perguntar que tipo de poder mágico era aquele, Juliano, confuso e sentindo, somente agora, os humores do terror, pôs-se a correr.

Segurando firme a pequena concha anil, correndo em desespero buscando como que acordar, ainda sangrando, Juliano pôde ver, sob um promontório, os demais indígenas que ajudara a libertar – crianças, mulheres e idosos –, observando-o em silêncio, enquanto ele avançava na direção donde nasce o sol.

 

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NOTAS:

 

O Rio de Janeiro sofreu dois ataques corsários consecutivos, no século XVIII. Em 1710, uma tentativa capitaneada pelo pirata Jean-François Duclerc foi rechaçada pelo fogo coordenado das fortalezas que margeavam a barra da Baía. Os portugueses haviam sido providencialmente avisados da chegada dos piratas. O que não aconteceu no ano seguinte, em 1711, quando uma maior armada (tendo quase o triplo de navios da anterior), aproveitando-se da bruma da manhã e do fato de parte dos fortes estavam desguarnecidos, penetrou ousadamente na Guanabara, venceu suas defesas e saqueou durante dois meses a cidade, tendo boa parte da população fugido para o interior. Somente após receberem resgate, deixaram a cidade. Seu chefe era o pirata e aventureiro francês René Duguay-Trouin.

 

Quase dois séculos antes, quando franceses sob o comando de Vilegagnon se aliaram a índios tamoios no domínio da Baía de Guanabara (onde fora fundada a colônia francesa denominada França Antártica), o cacique temiminó Araribóia auxiliou os portugueses na expulsão dos conquistadores franceses e também dos tamoios, tribo inimiga da sua, em 1567. Como recompensa, recebeu as terras onde fundou Niterói.

 

O Forte de São Domingos do Gragoatá foi originalmente construído em volta de uma grande pedra, que em tempo posterior foi cortada para a abertura de uma estrada, margeando a costa. Disso decorre a diferença entre o forte conhecido pelos mergulhadores, e o que encontraram no “passado”.

A região que margeia o forte era constituída por uma longa linha de praia; aterramentos posteriores diminuíram essa linha, mas deram espaço para a expansão do centro niteroiense, e para construções tais como os prédios do campus Gragoatá da UFF (Universidade Federal Fluminense).

 


Este conto faz parte do livro Fabulário Índigo. Disponível em formato impresso (aqui) e e-book (pela Amazon, aqui).


quarta-feira, 15 de setembro de 2021

As melhores frases de Albert Schweitzer reunidas em livro gratuito para download

 


Albert Schweitzer foi um campeão da vida. Nascido em 1875 em Kaysersberg, no então Império Alemão, desde jovem Albert mostrou-se possuidor de múltiplos talentos, e aos trinta anos já era professor, músico, escritor, teólogo e pastor estabelecido e renomado. Foi quando resolveu retomar os estudos num campo totalmente diverso: A Medicina. Não o fez por mero capricho intelectual: Seu propósito era dedicar-se a socorrer pessoas na desassistida África.

E assim ele fez, contra tudo e contra todos, pagando os mais duros preços – durante a Primeira Grande Guerra, já em África, chegou a ser aprisionado pelos franceses, passando anos num campo de concentração. Mas, retomada a liberdade, retornou ao serviço humanitário no qual gastou-se até o fim de seus dias.

Entre um atendimento e outro em sua clínica médica em Lambaréné, na África Equatorial Francesa (atual Gabão), ele escrevia livros que impactariam os homens de seu tempo e que seguem impactando e confrontando a cada um que se lhes depara.

Suas palavras e seu abnegado exemplo de pacifista, humanitarista e pensador ético foram lampejos que iluminaram o conflagrado Século XX, e lhe valeram o Prêmio Nobel da Paz, em 1952.

Aqui, nesta breve obra, coligimos um pouco do melhor do pensamento deste gigante do bem.

Para baixar o e-book (em formato PDF) pelo Google Drive, CLIQUE AQUI.


quarta-feira, 1 de setembro de 2021

SOBRE UM POEMA - Herberto Helder




Sobre um poema

 

Um poema cresce inseguramente

na confusão da carne,

sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,

talvez como sangue

ou sombra de sangue pelos canais do ser.

 

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência

ou os bagos de uva de onde nascem

as raízes minúsculas do sol.

Fora, os corpos genuínos e inalteráveis

do nosso amor,

os rios, a grande paz exterior das coisas,

as folhas dormindo o silêncio,

as sementes à beira do vento,

- a hora teatral da posse.

E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

 

E já nenhum poder destrói o poema.

Insustentável, único,

invade as órbitas, a face amorfa das paredes,

a miséria dos minutos,

a força sustida das coisas,

a redonda e livre harmonia do mundo.

 

- Em baixo o instrumento perplexo ignora

a espinha do mistério.

- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.