Daimon Ex Machina
(Demônio na máquina)
-
É a sua primeira vez?
Algo
no olhar dela me desagradou. Quem ela pensa que é para andar por aí sorrindo
assim? Batom exagerado numa boca grande demais. Baton sempre sepulta as bocas
grandes demais. Ninguém nunca avisa essas mulheres? E eu não vim aqui para
conversar. A mulher é persistente:
-
Amigo, entendo sua mágoa. Sorria! Estamos todos no mesmo barco, e se estamos
aqui é sinal de que buscamos a felicidade! Ela mora aí dentro! Falando nisso,
você já usou a serra elétrica de titânio?
Jeito
estranho de falar, e mais ainda de raciocinar. “A felicidade mora aí dentro”...
Mas ela tem alguma razão. Um tipo sinistro de felicidade mora aí dentro sim,
mas é quase um pecado chamar isso de felicidade. Catarse é que se fala? Tem
outra palavra... Êxtase? Não... Que se exploda! ...é isso, é uma explosão o que
acontece aí. A gente paga pra explodir.
-
Boa tarde. Tem cadastro?
-
Não.
-
Três, seis ou nove pequenos, um ou dois grandes, drones, o que vai querer hoje,
senhor? Agora temos pacotes de dois a seis drones. Temos a nova promoção
temática, com configurações contextualizadas envolvendo salas e maquinários, nas
temáticas alemã, japonesa, chinesa e americana.
-
Um grande só, por favor. Sala simples.
-
Bem, está ótimo. Vejamos aqui... sala 203, oitava porta à esquerda.
********
Colocaram
novas armas na sala. Era apenas um modelo de furadeira, agora são quatro; colocaram
ainda chicotes. Deus, o que pode um chicote contra o maldito metal?!?
Apanho
um grande porrete, uma espécie de taco de baseball com calombos na ponta, como
uma maça de um cavaleiro medieval.
O
robô é até bem grande. Uma espécie de robô de linha de montagem. Pelo tamanho,
quase dois de altura e com um braço em pinça de mais de três metros, deveria
ser da indústria automotiva, ou de alguma linha de montagem de grandes itens.
Dou
a primeira porrada na pontinha da pinça. Sempre começo por extremidades, que é
para poder degustar. Dou uma segunda pancada em rodopio, acertando pouco acima
do local do outro golpe, agora terminando de arrancar a ponta que ficara
pendurada. Sigo então o ritual de golpear e xingar, golpear e xingar. Na parte
do “tronco” da maldita máquina, encontro resistência, e as pancadas não surtem
tanto efeito. O bastão, metálico, chega a estar quente.
Apanho
uma das tais serras elétricas. Mas não vou cortar e derrubar o que restou do
construto, não; dou pequenos talhos aleatórios, no objetivo de enfraquecer sua
estrutura. Pego então outro porrete. E recomeço a desferir pancadas, uma
tempestade delas. Minhas mãos grossas ganham novos calos, perceptíveis pela
ardência característica. Sempre acontece.
Paro
para respirar, observando os frangalhos do demônio.
**********
O
primeiro a perder o emprego para uma máquina foi meu avô. Estamos em 2036, e isso
foi lá nos idos de 1989. Ele era montador numa indústria de geladeiras na
extinta Zona Franca de Manaus. Sem chances no Amazonas, o velho veio para o Rio
de Janeiro tentar sobrevida.
Conturbados
anos depois foi a vez de minha mãe, profissional de telemarketing, substituída
por um programa, um robô com “a voz da Cláudia Raia”, uma atriz famosa na
época. Meu pai era mesmo quem mantinha a casa; minha mãe, com problemas de
coluna herdados do tempo de horas diárias sentada como telefonista, não
conseguindo e nem podendo arrumar outra colocação no mercado, voltou a ser “do
lar”, que era uma forma antiga e não-remunerada de aniquilar-se em trabalhos.
Mas,
anos depois o demônio da máquina deu sua lapada no arrimo da família: meu pai,
a oito anos da aposentadoria, foi dispensado de seu emprego no Banco Bradesco,
em virtude da crescente automatização do setor bancário via caixas eletrônicos
e virtual banking.
No
vendaval dos pesares, ou apesar dos mesmos, meus pais me deram uma excelente
educação. Estudei arquitetura na UERJ. Após formado, comecei trabalhando para
um escritório que pertencia a um professor. Anos depois, os ganhos do
escritório estavam em queda, e eu já havia mesmo adquirido a experiência que
buscava. De tanto o “patrão” reclamar das contas, ofereci-me para deixar a
empresa: os outros dois arquitetos da equipe eram pais de família, afinal.
Abri
meu negócio, fui aos trancos, até que um formidável barranco me lançou numa provável
falência; me dei por vencido antes disso. Saldei as dívidas, encerrei o
escritório e após alguns meses consegui aprovação num concurso público.
A
sinistra história de minha família fez as vezes com uma precisão macabra:
exatamente como meu pai, a oito anos para minha aposentadoria, fui substituído
por um software de arquitetura baseado em inteligência artificial, uma
maravilha da tecnarquia capitalista. Desde 2023, funcionários públicos já não
gozavam de estabilidade, e fui demitido sem cerimônias.
**********
Esta
empresa cumpre um propósito quase fundamental, num nicho que cresce à exaustão.
Eles oferecem às pessoas suas clientes a possibilidade de vir aqui e quebrar
máquinas – isso mesmo, pagamos pelo simples prazer, ou mais que prazer, em meu
caso uma necessidade, de destruir esses demônios, esses vírus do “avanço”, do “progresso”,
da fome. Há desde robôs de variados formatos e tamanhos, o que é a
especialidade desta casa, mas em outras há também computadores de muitos feitios,
aparelhos de comunicação, todo tipo de máquina, de sucata dessa indústria
imparável da cibermecanização e sua força vital, a obsolescência programada. Na
Europa, em Mônaco, há mesmo uma dessas casas de luxo, onde se destroem não
sucatas, mas máquinas “acabadas de sair da prancheta dos projetistas”, conforme
as peças de marketing apregoam. Quem me dera.
Bem,
é aqui que eu extravaso, que eu explodo. Três gerações, você dirá, usufruindo
as loas do progresso. Na verdade, foram, somos, pois ainda sobrevivo, três
gerações prostituídas, varadas pela máquina, esse dente canino da mais-valia
que se faz “só-valia” nas mãos dos potentados e privilegiados.
Amanhã
voltarei a exercitar os calos de minha mão na indústria da construção civil.
Sou um pedreiro agora, ou quando dá. Quando não dá aceito ser ajudante.
Outros
possuem vícios em pornografia ou sonham comprar sua assistente sexual
cibernética; muitos gastam tudo o que têm nas novas drogas personofásicas, que
prometem levar os usuários a vivenciarem “novas personas/personalidades”. Meu
vício é este: a prática de exorcismo. Junto dinheiro até poder vir aqui e me
vingar. Aos poucos que sabem dessa minha, segundo um amigo, “extravagância”,
digo que é fácil me julgar de barriga cheia e estando no controle da máquina.
Mas a facilidade é temporária, assim como a ilusão de controle, pois a máquina
cedo ou tarde fará de todos nós, seus “cavaleiros”, apenas cavalos de seu
Reich, seu tecnorreino sem fim.
**********
Saio
da loja limpando meu suor, sob o olhar sorridente da atendente, satisfeita.
Há
um demônio na máquina, um que a humanidade não equalizou e que assim a vencerá;
um cujo o exorcismo tosco que pratico não pode exorcizar. Há um demônio na
máquina e/ou surgido da máquina, um daemon ex machina, assim como há um
Deus além das máquinas, um Deus que parece que perdemos em algum lugar, como um
desempregado (pela máquina?) – ou um apetrecho obsoleto. Será ainda possível
encontrá-lo?
Sammis Reachers
Boa noite!
ResponderExcluirPassei para ver o que está publicando, e ler.
Saudações poéticas!
Nobre Vieira, saudações! Seja sempre bem-vindo
Excluir