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quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O deserto, o oásis e a tamareira



O deserto, o oásis e a tamareira

Eu a conheci no Gragoatá, em Niterói, perto de um dos campus da UFF. Pegávamos o mesmo ônibus. Ela, menina de seus 16 anos, sempre de negro, com seus longos escorreitos cabelos negros. E as indefectíveis camisas negras de bandas de rock. Branca como a serpente edênica, que era branca como um anjo de luz se você não sabia. Muda e também calada. Ia todas as tardes levar sua irmã especial (tinha síndrome de Down) num colégio para especiais.
Nos olhávamos longamente. Eu estava na primeira separação desta de quem agora estou pela segunda vez separado, e a olhava com faminta ternura. Seu mutismo. Sua rebelião pelo silêncio e pelo luto. Seu contraste negro/claro.
Um dia não suportei e com meu melhor sorriso perguntei-lhe o nome. “Quem quer saber?”, foi seu semi-coice lacônico. “Eu quero. Meu nome é Sammis”. “Porque?”. “Porque te vejo todo dia, e te admiro”. “Tamara”, disse sem nenhum sorriso. Conversamos sobre bandas de rock. System of a Down, que naquele tempo era novidade. Não tinha namorado. Fiquei quatro dias sem vê-la, apenas alimentando as hienas da esperança. Quis ser romântico. Preparei uma carta, explanando acerca da origem e beleza de seu nome, meu sentimento por ela, e o poema de Gullar, flecha reciclada, já usado antes e usado depois, como bumerangue de um aborígene perdido na urbe:

Cantiga para não morrer

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Encontrei-a ao fim da semana, no ponto de ônibus. Cheguei já na hora em que elas embarcavam no coletivo. Eram três: elas estavam com sua mãe (era divorciada, moravam as três num apartamento em São Domingos, bairro contíguo ao Gragoatá). Num movimento furtivo, enquanto sua mãe estava na roleta garimpando na bolsa o dinheiro das passagens, cutuquei-a e entreguei-lhe a carta. Ela apanhou-a com sua mão alvíssima e expressão impassível, marmórea, e colocou no bolso. A minha carta romântica e culta.
Nas semanas seguintes, desapareceu. Perguntei ao cobrador, “aquela menina branquinha, com a irmã especial”, mas ele também não a vira. Vira a mãe com a menininha apenas.
Passados dois meses, reencontrei-a: ela estava dentro de um ônibus, sentada à janela, e eu parado no ponto. Cutuquei-a para que tirasse os fones e saísse de sua imersão roqueira. “Você sumiu, o que houve?” “Nada.” “E a minha carta, você gostou?” “Eu tenho namorado.” Bah, mulheres. Rostos mutantes da mesma Eva, do mesmo punhal.
Bem, eu era um pobretão de vinte e sete anos e ela era uma menina mimada filha da classe B.
Sete meses depois, abro o jornal O Fluminense que jazia já amarrotado sobre a mesa de meu patrão, e vejo sua foto. Ela tinha dezoito, não dezesseis. Sim, tinha namorado. Havia se suicidado junto a ele, no palacete do pai do mesmo, na nobre estrada Froés, em Icaraí. Deixaram um longo bilhete, que o jornal não reproduzia. Não quis me informar mais.
Talvez eu a teria salvo, Tamara. Com a minha dor maior que a sua, providenciaria sombra para seu descanso. Entraria e habitaria de literaturas, de asas, sua vida e seu silêncio. E devagar, e sempre em silêncio, iniciar-te-ia num arcano que seus mortos e tribos não podiam, não podem: a lenta explosão que é o conhecimento de Cristo.^

Sammis Reachers

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