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quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

A MORTE É CINZA



Agora juntas o teu peso/tudo o que é leve
Paul Celan



Agora juntas ao teu peso
a cinza
A leveza da nossa morte

Agora as nuvens te salpicam
com pequenas gotas de sol
As cidades estão escuras
sobre elas os cavalos da guerra
e o ódio do centauro

Fumo é o teu corpo
depois de te aprisionar a chaminé
e a cinza que pára
às portas
vigilantes do céu.

31/12/2009  


©J.T.Parreira   

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Paul Celan: Fuga da Morte



FUGA DA MORTE
 Tradução de Modesto Carone
Leite negro da madrugada nós o bebemos de noite
nós o bebemos ao meio-dia e de manhã nós o bebemos de noite nós o bebemos bebemos
cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Um homem mora na casa bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
escreve e se planta diante da casa e as estrelas faíscam ele assobia para os seus Mastins
assobia para os seus judeus manda cavar um túmulo na terra
ordena-nos agora toquem para dançar
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos de manhã e ao meio-dia nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
Um homem mora na casa e bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
Teu cabelo de cinzas Sulamita cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Ele brada cravem mais fundo na terra vocês aí cantem e toquem
agarra a arma na cinta brande-a seus olhos são azuis
cravem mais fundo as pás vocês aí continuem tocando para dançar
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita ele bole com cobras
Ele brada toquem a morte mais doce a morte é um dos mestres da Alemanha
ele brada toquem mais fundo os violinos vocês aí sobem como fumaça no ar
aí vocês têm um túmulo nas nuvens lá não se jaz apertado
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia a morte é um dos mestres da Alemanha
nós te bebemos de noite e de manhã nós bebemos bebemos
a morte é um dos mestres da Alemanha seu olho é azul
acerta-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
ele atiça seus mastins sobre nós e sonha a morte é um dos mestres da Alemanha
eu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita

Do livro: "Quatro mil anos de poesia", J. Guinsburg e Zulmira Ribeiro Tavares, Ed. Perspectiva, 1969, SP 

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

ESTRANHOS FRUTOS



 
 "As árvores do sul têm uma fruta estranha

Sangue nas folhas e sangue na raiz "

Abel Meeropol (pseudónimo Lewis Allan)




Deponham nas vossas árvores os estranhos frutos
nas árvores que crescem
alheias ao ódio, no Sul a baloiçar na brisa
os estranhos frutos a apodrecer no ar
pássaros negros presos
pelo cordão umbilical da morte
entre as folhas
os frutos estranhos que a vossa mão
pendurou nos ramos.

28/1/2013
© J.T.Parreira

domingo, 27 de janeiro de 2013

O Paraguaio de Campina Grande



O Paraguaio de Campina Grande

Everaldo trazia muambas do Paraguai. Relógios especificamente. Era um paraibano branco, forte, de cabelos à la Rambo. Eu trabalhei para Everaldo de 2002 a 2003, numa banca de camelô em Alcântara, São Gonçalo. Vendia os mais finos medidores temporais de toda a cristandade, e além: era um harém da relojoaria universal, de todas as marcas, da Suíça a Tókio, passando por Paris e Nova Iorque, a 20% de comissão. Eu era um garotão viciado em quadrinhos, fliperamas e rock’n roll, e dava pra viver meus vícios sem passar fissura.

Hoje tem alguma graça, mas antes só me chocava o inusitado, o vão de tal morte: um caroço de azeitona.

Foi em 2003, na semana em que o então prefeito do Rio, César Maia, re-inaugurou o Pavilhão de São Cristóvão, a Feira Nordestina. Tomava, assentado numa roda de conterrâneos, uma cachaça vermelha, da terrinha, depois fui saber, dita ‘Santa Rita a Vermelha’. Estranho nome para uma santa, ou cachaça, mas dá na mesma, pensei na época. Engasgou com o tira-gosto, levantou-se já vermelho, deram-lhe socos nas costas, e tapas, e mais socos, muitos socos pelo que me disseram, mas não adiantou. Caiu ali, puseram-se a abaná-lo, mas já não havia ar, já não havia anima (espírito) naquele corpo.

Tinha na bolsa dez cordéis que me comprara, eu havia lhe encomendado. Eu adorava cordéis, como adorava os livrinhos de western, de bolso, que brasileiros escreviam com pseudônimos americanos. Pulp-fictions verde-e-amarelos. Não sei por que digo isso, não quero fugir do assunto, do Everaldo, mas sempre que me lembro dele penso nos cordéis, ‘João Cabrobró contra Satanás’, ‘A rixa do Carcará contra o Sapo-boi’, ‘Morte e Vida Severina’, e outras fugas da secura do sertão, da secura nonsense e repetitiva da vida, do nonsense seco e tedioso da morte.

Sammis Reachers

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O deserto, o oásis e a tamareira



O deserto, o oásis e a tamareira

Eu a conheci no Gragoatá, em Niterói, perto de um dos campus da UFF. Pegávamos o mesmo ônibus. Ela, menina de seus 16 anos, sempre de negro, com seus longos escorreitos cabelos negros. E as indefectíveis camisas negras de bandas de rock. Branca como a serpente edênica, que era branca como um anjo de luz se você não sabia. Muda e também calada. Ia todas as tardes levar sua irmã especial (tinha síndrome de Down) num colégio para especiais.
Nos olhávamos longamente. Eu estava na primeira separação desta de quem agora estou pela segunda vez separado, e a olhava com faminta ternura. Seu mutismo. Sua rebelião pelo silêncio e pelo luto. Seu contraste negro/claro.
Um dia não suportei e com meu melhor sorriso perguntei-lhe o nome. “Quem quer saber?”, foi seu semi-coice lacônico. “Eu quero. Meu nome é Sammis”. “Porque?”. “Porque te vejo todo dia, e te admiro”. “Tamara”, disse sem nenhum sorriso. Conversamos sobre bandas de rock. System of a Down, que naquele tempo era novidade. Não tinha namorado. Fiquei quatro dias sem vê-la, apenas alimentando as hienas da esperança. Quis ser romântico. Preparei uma carta, explanando acerca da origem e beleza de seu nome, meu sentimento por ela, e o poema de Gullar, flecha reciclada, já usado antes e usado depois, como bumerangue de um aborígene perdido na urbe:

Cantiga para não morrer

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Encontrei-a ao fim da semana, no ponto de ônibus. Cheguei já na hora em que elas embarcavam no coletivo. Eram três: elas estavam com sua mãe (era divorciada, moravam as três num apartamento em São Domingos, bairro contíguo ao Gragoatá). Num movimento furtivo, enquanto sua mãe estava na roleta garimpando na bolsa o dinheiro das passagens, cutuquei-a e entreguei-lhe a carta. Ela apanhou-a com sua mão alvíssima e expressão impassível, marmórea, e colocou no bolso. A minha carta romântica e culta.
Nas semanas seguintes, desapareceu. Perguntei ao cobrador, “aquela menina branquinha, com a irmã especial”, mas ele também não a vira. Vira a mãe com a menininha apenas.
Passados dois meses, reencontrei-a: ela estava dentro de um ônibus, sentada à janela, e eu parado no ponto. Cutuquei-a para que tirasse os fones e saísse de sua imersão roqueira. “Você sumiu, o que houve?” “Nada.” “E a minha carta, você gostou?” “Eu tenho namorado.” Bah, mulheres. Rostos mutantes da mesma Eva, do mesmo punhal.
Bem, eu era um pobretão de vinte e sete anos e ela era uma menina mimada filha da classe B.
Sete meses depois, abro o jornal O Fluminense que jazia já amarrotado sobre a mesa de meu patrão, e vejo sua foto. Ela tinha dezoito, não dezesseis. Sim, tinha namorado. Havia se suicidado junto a ele, no palacete do pai do mesmo, na nobre estrada Froés, em Icaraí. Deixaram um longo bilhete, que o jornal não reproduzia. Não quis me informar mais.
Talvez eu a teria salvo, Tamara. Com a minha dor maior que a sua, providenciaria sombra para seu descanso. Entraria e habitaria de literaturas, de asas, sua vida e seu silêncio. E devagar, e sempre em silêncio, iniciar-te-ia num arcano que seus mortos e tribos não podiam, não podem: a lenta explosão que é o conhecimento de Cristo.^

Sammis Reachers

domingo, 20 de janeiro de 2013

Namor, o Príncipe Submarino



Namor, o Príncipe Submarino

Balas de Açúcar Andorinha
Doces Andorinha
Matusalém Batata Palha
Sorveteria Panosi
Fraldas Descartáveis Panosi
Video-Locadora Panosi Play
Foto e Filmagens Panosi
Buffet Panosi
Video-Locadora Blue Sea
Lavanderia Armênia
Armênia Confecções
Pan Moda Íntima
Pensão Panosi
Panosi Pizzas
Vila de Quitinetes Panosian
Imobiliária Panosian
Incorporadora Panosian e Filhos
Motel Rio Stars
Hotel Rio Stars
Rio Stars Resort Angra
Rede Hoteleira Rio Stars
Panosian Espaço de Eventos
Pré-Moldados Panosian e Filhos
Empreiteira Stan Panosian
Shopping Panosian
Parque Aquático Panosian
Linhas Aéreas Region...
                                            ...morreu no voo inaugural de sua sequencial vigésima sétima empresa, na ponte aérea entre Rio e São Paulo. Seu avião caiu sobre o mar, próximo a uma praia.
Filho de armênios, predestinado empreendedor que montou seu primeiro negócio aos 14 anos (as dulcíssimas Balas de Açúcar Andorinha), workaholic, worklover, homem de seu tempo, exemplo de seu tempo, homem sem seu tempo. Foi meu patrão em seis de seus vinte e sete empreendimentos. Abnegado, combativo, negociador nato, conselheiro, coaching e  mentoring intuitivo: era o protótipo de homem que reunia em si os arquétipos que a revista Pequenas Empresas Grandes Negócios e Exame idealizam, cada qual sob seus sócio-economáticos filtros, para um empresário de sucesso.

Traído pelas três sucessivas esposas, roubado pelos filhos, morreu, pois mesmo dono do maior Parque Aquático da América Latina (o atlântico, o oceânico Parque Aquático Panosian), nunca teve tempo de aprender a nadar: no minuto após o pouso forçado sobre o espelho d’água, antes de a pequena aeronave submergir, conseguiu sair do avião, mas morreu afogado. Fiéis às lições de seu mentor, os pilotos e seus dois sócios estavam focados demais salvando-se a si mesmos.
Também não sabia pescar, não sabia Cézanne ou Renoir.  Não que essas frugalidades inúteis pudessem salvá-lo. Também não sabia que morreria, nunca teve mesmo tempo para isso.

Sonegador de impostos, corruptor de corruptos, sempre um passo à frente de seus concorrentes, seja vendendo fraldas de porta em porta na favela, seja ganhando licitações fraudulentas e construindo prédios superfaturados para a habitação pública.

Stan Panosian, o otário mais esperto e rico com quem já comunguei. 

Sammis Reachers

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

GAZA



No caminho para Gaza
tudo será diferente, encontrarás
explicação, das metáforas de Isaías
a visão será real nos teus olhos
já nascido o Menino
foi belo, até a beleza se perder
do rosto no Calvário.

16/1/2013

© J.T.Parreira




domingo, 13 de janeiro de 2013

SE ESPUMA

se espuma ainda te resta
dos dias 
sacode-a no oceano 
sacode-a no império da maré

o oceano tem o seu modo de contar 
a história tem o seu jeito
de levar e trazer a espuma 
a vaga retorta
o que ele tem desfaz
o que não tem dá

ora tu, tu deixa
que o sangue das anémonas
vá, vá no azul forte
que os teus dedos com ele
se desfaçam

deixa ao oceano
ao seu fundo de anénoma palpitante
a tua espuma

Rui Miguel Duarte

12/01/13



terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Réquiem Inaugural



Réquiem Inaugural

Num beco em Vitória, Espírito Santo, surpreendido sem armas,
longe da Literatura e de Borges, morreu hoje, neste dia
um de 2013, Marcelo ‘Jamanta’.
Ex matador de aluguel, depois justiceiro, e garimpeiro,
ourives, cigano, bibliófilo e fino falsário de passaportes.
Na revolta dos Ianomâmis em 89 fez a opção pelos cães,
tomou o partido dos índios e matou seis pistoleiros
que estavam a mando da grilagem de terras.
Em Brasiléia, em 98, tomou o Daime, e teve alucinações com
o Aleph borgiano e um pretenso olho paridor do Universo,
sito 300 metros acima da foz do Orenoco,
estranha singularidade que não podia ser vista ou tocada,
mas ao entrar-se em seu campo de ação passava-se a
sê-la, a ser com ela, a ser-se todas as coisas e coisas mais
que ele não sabia explicar nem eu sabia entender,
história que sempre me fascinava.
Morreu sem conhecer a Istambul de séculos sobrepostos,
morreu sem roçar a realidade de sua namorada virtual,
riograndense a quem prometera tantos beijos, quando pudesse vencer
a tanta distância que os separava.
Morreu sem ter morrido onde sonhara morrer:
ao norte frio do orbe, numa floresta de faias.

Este é um Réquiem para um amigo, e me parece algo
de estético empregar o efeito dito eco:

morreu sem ter morrido numa floresta de faias
morreu sem ter morrido numa floresta de faias
morreu sem ter morrido numa floresta de faias
Marcelo Jamanta, num beco escuro de Vitória,
Espírito Santo,
três tiros no peito.

Sammis Reachers (texto e imagem)

SALMO 2(01)3

Há sempre palavras
rápidas pássaros rubros
no dorso da lã que nos dizem
nos intervalos da passagem de ano
no transbordo para águas
à beira do descanso

que o Senhor nosso pastor
baixa atrás de nós a vara
e diante de nós o seu cajado
palavras que rasgam
aquém do limiar prados verdejantes
que os nossos passos banham para além

palavras de duas caras, uma que se fecha
outra que se abre sempre fresca
e opulenta de vinho azeite e mel

Rui Miguel Duarte
1/01/13