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segunda-feira, 25 de junho de 2012

As Barcas de Caronte


“navegam em mim barcos assustados”
Julio Saraiva

 
Algum dia
queimaremos as naves de Caronte
Por agora prossegue a obstinada mort
e
no alfabeto a letra com que vai
começar o nosso nome
Mas ainda o sangue se renova
nos ramos que partem do nosso coração
Algum dia estaremos sentados a ouvir
os anjos a tirar das suas harpas
os silêncios celestiais
Por agora, como Ulisses amarrados
ao mastro do navio, deixamos que as ondas
nos falem ao ouvido.



24/6/2012
© J.T.Parreira

quarta-feira, 20 de junho de 2012

TELEFONE PARA O SILÊNCIO









Para Sylvia Plath


Telefona-me para o silêncio
do meu coração, o som
baterá no que resta ainda dos cristais
nos recantos vazios da noite


Esta noite
preciso da luz apagada
da minha estrela


Chamo-te quando vem o silêncio
desse lado do fio, do frio
deste telefone público sem respostas
na profundidade dos teus ouvidos
caem as minhas chamadas
há um grito
no limite das sombras
a perder-se no abismo. 

19/6/2012

© J.T.Parreira

sexta-feira, 15 de junho de 2012

ENTRE O MADEIRO E A LANÇA



Entre o madeiro e a lança
a cicatriz no peito, o espanto da água
no sangue
inocências misturadas
a lança no coração até ao infinito
do corpo lavrado
e a morte soluça
Entre o madeiro e a lança
o espírito
vai longe às mãos do Pai
e os lábios têm essa doçura
nas últimas palavras.

15/6/2012
© J.T.Parreira

quarta-feira, 13 de junho de 2012

BALADA PÁTRIA

“O favor com que mais se acende o engenho
não no dá a pátria…”
Camões, Os Lusíadas X 145

a pátria dorme em requebros de onda
espreguiçada na praia por não ter
mais navios que lhe alisem o dorso

a pátria tem pedras que não falam
nas quais ninguém escreve
porque alguém quebrou o martelo e o escopro
antes de a entregar ao gravador

a pátria acende-se com lamparinas
que rivalizam com o sol
queima balões e engenhos
enche a boca de favores

mas não nos dá o favor

Rui Miguel Duarte

11/06/12


Dois poemas de Raul Miranda


Ainda Há Espetáculo

Ainda há espetáculo
nos bastidores de meu rosto.
Ainda há resistência
nos músculos apodrecidos de meu corpo.
Ainda há perfume
nos caminhos percorridos em meu rastro.
Ainda há sustentáculo
nos versos escritos na pressa de meu tempo.
Ainda há ardência
nos braços estendidos da mulher de meu gosto.
Ainda há insistência
nos espetáculos de pouca freqüência
que esvaziam a platéia e meu rosto.


FATOR NEGATIVO NOS ARES

Tentarei escrever um poema
para afastar o tédio,
para amansar a dor,
para amamentar os segredos,
para destronar o medo.
Tentarei, não conseguirei, matar
os rótulos dourados do remédio,
os palácios odiados da fartura,
os bolsos cheios do patrão,
os impostos com fuzil na mão.
Procurarei por todos os cantos
um bocado de amor para os amantes,
uma revolta para os acomodados,
uma boca sem cadeados.

Do livro Novo Ar (Rio de Janeiro: Folhetim, 1976)

terça-feira, 12 de junho de 2012

A TENTAÇÃO

(Inédito)

Sobre a aridez sem referências
do deserto, o Filho do homem
falou com o frio da noite, espesso

frio como a escuridão sem lugares
onde encostar os olhos, falou
com o sol sem sombras
como o próprio Deus depois de plantar
o jardim, falou sozinho
até que Satan – não o de Dante
lhe pôs pedras no meio do caminho.

12/6/2012


 © J.T.Parreira

domingo, 10 de junho de 2012

PAIXÃO DE DIDO



PAIXÃO DE DIDO

… longumquam bibebat amorem
“… bebia um extenso amor…”
Virgílio, Eneida 1.748

em cada trago absorvia
bagos longos e densos de amor
em cada trago de voz
suspenso dos gumes das ondas
que lhe secaram a pele, a esse herói
de outras cores na língua
de outras dores em fuga do destino
de coração devoto de outros deuses
querido filho de seu pai,

bebia a cada pergunta sobre as canções
de gestas de guerra com que rompe
o silêncio dos gritos dos mortos em Ílion
dos perecidos nas bocas negras da espuma

que lhe falasse dos palácios orgulhosos
de Príamo, de longínquas terras
com sabores que dos gestos tensos
e pelo mastigar lento das palavras bebia

à roda das gestas
e na roda da barba rubra do fatigado herói
um trago efémero estreitou-lhe o peito
para sempre

Rui Miguel Duarte
10/06/12

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Fuga para a Morte de Paul Celan


Morreu sozinho, ao contrário
da multidão dos mortos de Auschwitz
morreu na breve ondulação
das águas, não velozmente
porque o rio Sena é um rio lento
de lentos reflexos de óleo e luzes
dançou o tango da morte com violinos
nos ouvidos, bebeu goles de sangue
o pulmão encharcado e nos olhos
a ponte Mirabeau a dissipar-se.

6/5/2012
© J.T.Parreira.

terça-feira, 5 de junho de 2012

SANCHO




Sancho é um corpo universal”

Nélida Piñon


Sancho é largo, quase rente
ao chão, Sancho
avoluma-se na magreza do Quixote

É um gigante, largo
em trânsito no chão manchego
é, por vezes, os olhos do Quixote

O ritmo de Sancho é lento
a realidade vai atrás do brilho
da armadura do Quixote

O moinhos são os panos do vento
Sancho, vestido de pele
e coração, como os conhece de perto.



5/6/2012
© J.T.Parreira