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domingo, 18 de junho de 2023

The Arcade Fire - Um conto em homenagem à era de ouro dos fliperamas

 


Todo fliperama tem desses. Nós mesmos o somos, quando duros: O observador, o que fica vezes horas observando outros jogarem, em silêncio, mais ou menos interessado. Vezes outras observam, observamos as máquinas jogando “sozinhas”, no modo demonstração.

Por isso, aquele indivíduo, embora já mais adulto que adolescente, só atraiu a atenção por não ser do bairro. Mas isso era o de menos, as ruas eram movimentadas e a fama daquele point, por sempre receber primeiro as novidades, as novas placas de jogos vindas direto de São Paulo, atraía expedicionários de largo chão.

Era um dia inspirado: Após surrar nada menos que oito formidáveis oponentes no The King of Fighters ’97, pulei para o Mortal Kombat e segui surrando quantos havia – até o menestrel do jogo, Maurício, desta vez espancado com desenvoltura.

O ânimo era tanto naquela sexta-feira alcançando a noite que fomos para as máquinas B, os jogos divertidos, mas não tão solicitados: A disputa comunitária se transferiu primeiro para uma cabine de World Heroes Perfect, depois para uma de Samurai Shodown. E ali, meus pares ficaram pequenos naquela sexta, esmurrados e guilhotinados para além do normal da balança. Bem, na verdade aquilo era meio de praxe já. Eu era um completo aficionado (meus detratores me diziam viciado) em jogos eletrônicos, notadamente os de luta; passava horas dos dias, todos os dias, nos fliperamas. Por vezes a fissura era tanta que eu esperava algum deles abrir, sentado à porta já antes das sete da manhã.

Naquela noite, ao rumarmos para as tais máquinas, percebi que o “olheiro” nos acompanhara. Observava agora atento, eu aplicando sopapos e magias no Samurai Shodown. De tanto vê-lo ali, a observar em silêncio os trâmites da jogatina, ousei desafiá-lo:

– E aí meu amigo, bora? Quer jogar um pouco?

Ele quebrou a impassividade com um meio sorriso, e me deu um tipo de cartão ou flier. Era na verdade um convite:

 

THE ARCADE FIRE

GRANDE TORNEIO UNDERGROUND

APENAS JOGOS DE LUTA

RALLY DE 20 JOGOS ALEATÓRIOS

Torneio fechado Apenas 24 jogadores

 

1º colocado: R$ 6.000 e NEO GEO CD; 2 º: R$ 3.000 e NEO GEO CD;

3 º: R$ 2.000 e NEO GEO CD. 4 º e 5 º: R$ 1.000 cada.


Número: ______19_______.

Torneio justo e às cegas: Jogos e personagens aleatórios 

Se você tem este bilhete, considere-se convidado! Ligar para (021) 701-7766.

 

 

Hoje, 9 de outubro de 1997, o salário mínimo vale míseros 120 reais. Assim, aquela premiação dispensava comentários. A numeração à caneta, “19”, num torneio com apenas 24 competidores, me perturbou. Seria tudo aquilo uma piada? Mas, caramba, eu era um dos melhores, senão o melhor jogador do talvez principal fliperama da cidade. E naquele dia estava absoluto, exuberante no joystick! Decerto o carinha não estava ali, observando há mais de três horas, à toa!

Atônito sorvendo e digerindo as informações, quando retomei ao indivíduo e perguntei se havia taxa de participação, comum nos incipientes torneios que eu já vira, ele já estava à porta do fliperama, a tempo de dizer: “Não. Um patrocinador rico está bancando tudo.”

Resolvi não mostrar o convite para outros amigos, até ver onde aquilo tudo daria. A concorrência era forte na cidade, e só de participar de algo assim, minha fama tomaria as ruas com fôlego redobrado. Mas, se fosse uma brincadeira, uma “pegadinha”, eu iria passar uma vergonha colossal...

Dia seguinte, liguei para o número. Uma voz feminina me atendeu, solícita e atenciosa. Parecia mesmo uma secretária! Ou o negócio era sério mesmo, ou era alguma treta para arrancar nosso dinheiro, como os cursos preparatórios que carinhas como aquele iam oferecer nas escolas.

A moça pegou meus dados, e informou que o torneio seria realizado num endereço na zona portuária do Rio de Janeiro. Conhecia o lugar de passagem; estranho lugar, abandonado e sombrio, com uma pegada de filmes americanos made in anos 80. Eu era de São Gonçalo, município da região metropolitana do Rio de Janeiro, e a atendente me informou que a organização não ofereceria transporte, e eu deveria para lá me dirigir por minha conta. Apenas competidores de outros Estados teriam as despesas cobertas. Outros Estados!

Nos poucos dias antes da data especificada em meu convite, me pus a treinar. Vinte jogos de luta diferentes – bem, era coisa pra cacilda! Comecei a frequentar com redobrada sofreguidão locadoras de games, fliperamas de shoppings, consultar revistas – as que eu colecionava e outras, emprestadas de colegas.  Um ou outro, que me vira receber o convite, de quando em vez perguntava, “e a parada lá?”, “mixou, era enrolação”, eu desconversava.

No dia e hora aprazados, lá estava eu em frente a um alto portão de ferro, na zona portuária. Havia outros jovens e até adultos ali, gente de todo feitio. Acreditei mesmo ver um japinha que parecia o articulista de uma conhecida revista de games da época. Bem, se até ele estava ali, o negócio seria à vera!

No minuto exato que nos fora informado (10h15), o pesado portão se abriu, e adentramos a um sombrio galpão. Lá dentro, sentamos em algumas cadeiras de ferro, dessas de bar, novas, e uma mulher passou a nos explicar detalhes do evento. Uma coisa, mais que tudo, me chamava a atenção: A quantidade de seguranças – pois, pela estatura, porte e movimentos, só podiam ser isso mesmo – presentes no local.

Nossos dados e documentos foram novamente conferidos, e então o funcionamento do torneio foi passado a limpo. Ele aconteceria por chaveamento, precedido de sorteio. Assim, os primeiros combates seriam sorteados, e os demais seguiriam o chaveamento programado.

Estávamos ansiosos para ver as máquinas, quando fomos solicitados a levantar e acompanhar o nosso mestre de cerimônias. Mas, ao passar por uma porta, que eu acreditava daria acesso a outro galpão, onde teríamos as cabines de fliperama ou o que fossem, me deparei com o mar. E um baita iate ancorado no atracadouro.

O nosso guia então revelou que o torneio aconteceria a bordo do navio – em alto mar. Ouve um burburinho geral. Uns acharam a informação emocionante; outros ficaram receosos – talvez alguns daqueles nerds nem soubessem nadar! De minha parte, a aura de mistério me excitou ainda mais.

Adentramos então ao luxuoso barco, sendo acomodados num salão principal do mesmo, onde fomos soberbamente servidos com canapés, doces, bebidas sortidas. Agora a felicidade era geral; a ansiedade emprestava risinhos animados a todos os rostos.

Após nos fartarmos, fomos levados então a nossos aposentos – pequenas cabines individuais, com uma pequena cama, um cabideiro e uma mesinha. Bem apertado, mas, e daí? Uma aventura daquelas não se vive todo dia.

Mesmo com toda a excitação e ansiedade, e embora fosse pouco depois do horário de almoço, surpreendentemente consegui dormir – na verdade, ao me sentar na cama, apaguei.

 

*  *  *

 

Quando acordei, um cenário inesperado me envolvia.

Eu estava sentado numa fria e desconfortável cadeira de ferro, tendo diante de mim uma cabine de fliperama, uma daquelas cabines “pela metade”, chamada também de bartop. Minhas duas mãos já estavam sobre o painel da máquina, e não podiam de ali sair: elas estavam algemadas. Sim, presas, assim como meu corpo, afivelado à cadeira, preso por umas três faixas como essas de cinto de segurança dos automóveis. Minhas pernas estavam igualmente aferradas aos pés da cadeira.

Mas o mais aterrorizante era uma espécie de mangueira ou tubulação, fina, “colada” em meu pescoço. Eu não conseguia ver como aquilo estava afixado, mas, pela dor que sentia, imaginei que havia uma agulha enfiada em meu pescoço, e aquele tubo era para bombear algo para meu corpo, talvez soro ou medicações – ou sonífero, que eu agora imaginava ter sido a causa de meu “desmaio” após o almoço.

Tentei imaginar que tudo era apenas um sonho, fruto de minha excitação e do choque de encontro a tanta novidade. Mas a dor em meu pescoço, a dor nos pulsos ao tentar me livrar das algemas, não me deixava debitar aquilo na conta de Oneiros.

Foi só então que olhei à minha volta e percebi que eu estava selado numa pequena cabine toda feita de vidro transparente. Como aquela minha célula, haviam outras vinte e três, dispostas em círculo, e nelas estavam o que deveriam ser os demais competidores.

Um forte clarão veio então do meio daquele lugar em volta do qual estávamos espalhados. Eram as luzes de oito telões, nos quais um indivíduo apareceu.

“Boa noite, senhores. É um prazer tê-los aqui neste torneio. Eu sou o seu anfitrião. Meu nome não importa, mas podem me chamar de Mister Big. Eu sou um admirador dos games em geral, e grande apreciador de jogos de luta. Este torneio, o mais justo e mais surpreendente que jamais houve ou haverá, decidirá quem é o maior dos jogadores do Brasil. Gastei bastante dinheiro enviando olheiros para diversos Estados, em busca dos melhores dentre os melhores – e aqui estão vocês.

Como dito no convite que receberam, os jogos serão escolhidos aleatoriamente, assim como o seu personagem em tais jogos. Caso o jogo não tenha a modalidade de escolha random ou aleatória, a organização sorteará um dos personagens para cada um dos combatentes.

Senhores, antes de iniciarmos, deixem-me esclarecer a questão mais importante, aquela que fará deste torneio algo único – este é um torneio de fliperama de vida ou morte. Sim; necessário é dizer que somente um de vocês sairá daqui com vida. Veem essas agulhas enfiadas no pescoço de vocês? A cada derrota, uma quantidade de sangue será drenada do corpo do perdedor. Uma derrota total lhe jogará numa repescagem, e lhe custará um pouco mais de sangue; perdida essa repescagem, haverá ainda uma repescagem final. Derrotado aqui, você deixará o torneio – e a vida.

E mais: A cada round perdido, um pouco, muito pouco, de seu sangue será drenado; assim, mesmo vencendo a partida, pode-se perder sangue no processo – a não ser que você não perca nenhum round.

Um grande estudioso dos jogos, provavelmente um desconhecido de vocês, Johan Huizinga, dizia que “o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da ‘vida cotidiana’”.  E aqui estão vocês, voluntários cobiçosos e desejosos de, nesta ebulição de tensão, dor e alegria, mostrar que são os melhores! Tomei para mim o papel de lhes proporcionar o melhor e maior dos campeonatos possível.

Dito isto, desejo boa sorte a todos. E repito, para finalizar: Isto não é uma brincadeira, simulação ou pegadinha. Suas vidas dependem de sua perícia nos manetes.”

Àquela altura eu suava e chorava; não conseguia saber da reação dos demais jogadores, pois as placas de vidro não permitiam que sons entrassem ou saíssem, e tudo que ouvia vinha de um circuito de som interno. Mas era possível ver alguns dos competidores se debatendo desesperadamente, tentando – inutilmente – se libertar.

Os telões se apagaram e depois acenderam – e já estava na tela a tabela dos confrontos, mostrando o jogo e o adversário inicial de cada contendor.

O pesadelo já mostrava suas garras: o torneio para mim começaria com o jogo Fighter’s History, um jogo medíocre, que saíra apenas para o Super Nintendo e, pior, a que eu tivera acesso ou jogara apenas umas três vezes. Era torcer para meu adversário nunca ter visto o jogo, ou ser um jogador inferior. No fundo eu mantinha ferozmente viva a esperança de que tudo aquilo fosse uma imensa brincadeira de mal gosto, mas eu não podia e nem iria pagar pra ver.

Segundos depois, a tela em minha frente se acendeu, e o sistema escolheu um personagem – Feilin – sem meu comando, já que o jogo aparentemente não tinha sistema de random.

Mais do que de socos, chutes ou golpes especiais, um jogo de luta depende de timing, e cada jogo possui seu timing único. O tempo certo de bater, defender, esquivar-se – isso cria o jogador vitorioso.

Talvez por desespero, talvez imperícia, meu adversário iniciou o jogo apertando repetidas vezes o soco fraco, como quem busca identificar os botões. Por sorte eu estava um pouco além daqueles rudimentos, e já pulei sobre ele acertando a sequência clássica de voadora, soco e rasteira. No restante daquele e do segundo round, foi fácil vencer meu oponente. Assustado e exaltado após a partida, procurei observar os jogadores à minha volta, mas era impossível saber qual deles fora o meu contendente; embora os nomes tenham aparecido no telão, quando do sorteio das partidas iniciais, não havia nada nas cabines que indicasse o nome de seus ocupantes, e os jogos aconteceram ao mesmo tempo, ou seja, todos jogaram juntos. Meu estado de horror e euforia durou menos de um minuto, para logo entrar em suspensão, pois em seguida foi a vez do jogo Breakers – e eu me senti aliviado. Um game de luta da Visco, sobre o qual eu tinha algum domínio. De toda forma, não era um jogo antigo (fora lançado em 1996) nem tão desconhecido, e isso poderia contar contra mim...

Como o anterior, o jogo não possuía random, e pelo sorteio me coube o personagem Maherl, um muçulmano gordinho e bastante apelão. Ao meu adversário coube Rila, espécie de mulher-fera, musculosa e descabelada. Iniciei a partida pulando para trás e lançando um golpe em que o personagem atira sua espada – uma cimitarra. Meu adversário pulou sobre a mesma, para a frente. Eu consegui alcançá-lo enquanto caia, e emendei à voadora que lhe atingiu desprevenido, dois socos fracos e um soco forte. Na sequência tentei lançar o golpe em que o personagem cospe uma nuvem de fogo (C pra frente + soco fraco), mas aí foi a vez de meu adversário pular e me acertar a voadora e um chute, seguido de rasteira. Me levantei defendendo, mas logo cometi outro erro: Saltei para trás, para me reorganizar, e neste momento o meu oponente liberou o especial de Rila, que brilhou, saltando à distância sobre meu pescoço, e aplicando diversas mordidas. Meu oponente mostrava por que passara para a segunda fase, pois aparentemente conhecia aquele jogo, e bem o suficiente para me derrotar no primeiro round.

Senti então o que temia – um leve movimento ou sensação no pescoço, oriunda da sucção empreendida pela agulha. Vi um pouco de meu sangue fluir pela fina mangueira – sabe-se lá para onde.

Meu sangue fluindo para fora de mim teve o efeito do terror. E, paradoxalmente, como que me vivificou ao invés de debilitar:

Nos próximos dois rounds, não dei chance para o outro jogador, aplicando seguidamente combos – aprendidos no calor de tentativa e erros do momento – seguidos de golpe especial.

Por 2 rounds a 1, venci aquela partida. Aparentemente não se permitia aos jogadores tempo para descanso, pois a tela do jogo em minha cabine sumiu e logo apareceu a abertura de Super Street Fighter 2 Turbo. Alucinado pela adrenalina, só então reparei minhas mãos, e vi que elas tremiam. Mas naquele jogo eu era bastante experiente. Bem, eu e todos os jogadores do mundo. O random me jogou no colo Shun Li, personagem mediana; temi que meu adversário ganhasse de presente Ryu ou Ken, os apelões da franquia, mas a sorte me ajudou, e ele ficou com o também mediano Dee Jay. Minha ilusão durou menos de um minuto; num descuido enquanto lançava a magia da chinesa, meu adversário saltou sobre minha guarda aberta, entabulando voadora + soco + chute + especial. Fosse quem fosse, era um ótimo jogador. Me dei conta então que aquele já era o terceiro jogo ao qual eu avançara sem perder partidas, e era natural e esperado que o nível dos jogadores crescesse. Mais uma vez senti a sucção em meu pescoço. Maldito dia em que desafiei aquele olheiro, maldito dia em que aceitei aquele convite, sem desconfiar ou sem desconfiar o suficiente, cheio de mim, me achando o bonzão, o maioral!

Suava frio e tremia, enquanto se iniciava o segundo round. Meu adversário pulou sobre mim sem chutar ou socar, e ao cair – manobra clássica – imediatamente me agarrou num balão. Em seguida tomou distância, lançando magias, intercalando magia feita com soco forte (rápida) e fraco (lenta), buscando um erro meu. E conseguiu, ou ele ou meu desespero, pois ao saltar para a frente, no objetivo de alcançá-lo, cai sobre uma das magias. Se perdesse aquele round, cairia na tal repescagem, não sem antes perder boa dose de meu sangue. Deus, que tipo de pesadelo era aquele!!!

Arrancando forças sabe-se de onde, tentei recuperar o sangue frio que me fizera famoso nos fliperamas. Uma dupla sequência de voadora + soco forte + rasteira ajudou a empatar as barras de life, e um especial decidiu o round a meu favor. No terceiro round, menos apavorado, foi a minha vez de administrar o combate e aguardar os erros de meu adversário, que vieram.

Após minha vitória, eu procurava manter a calma e parar de tremer, aguardando já o próximo jogo e torcendo para ser um jogo que eu dominasse, mas a tela apagou-se por coisa de uns três minutos. Após isso, a figura do desgraçado que se anunciara como organizador do evento apareceu. Ele parabenizava a mim e a outro jogador, por sermos os únicos a vencer três partidas consecutivas, sem perder. Agora, ele dizia, deveríamos esperar que as repescagens fossem realizadas, para definir quais seriam nossos adversários. Enquanto isso, como numa macabra concessão, acabou revelando um pouco mais de si e de sua loucura:

– Vocês devem estar se perguntando o motivo de tudo isso. Bem, assim como vocês, eu sou um viciado, um completo viciado em jogos. E meu maior prazer é ver a galera jogando contra.

Meus pais faleceram num acidente de helicóptero, há coisa de um ano. Um acidente que me custou quase dois anos de economias. Eu herdei toda a fortuna que eles me impediam de usufruir como eu desejava. Desde então, comecei a imaginar a criação de um torneio. Seria antes um torneio normal, que eu objetivava que fosse o maior do Brasil, e estava disposto a empregar dinheiro de minha farta herança nele. Mas algumas tratativas com uma rede de TV me decepcionaram; mesmo pagando, eles se recusaram a televisionar meu evento, alegando que “videogames não são esporte”.

Mas eu sou um visionário, e transformei minha decepção inicial em algo maior: Para que criar um torneio simples, como se fosse de tênis ou futebol? Eles estavam enganados – aquilo era sim um esporte, e o mais radical deles, um que dominará o futuro, todos os futuros. E eu seria o paladino, sobre o sangue de vocês, honrados mártires, a provar! E mais, para quê televisionar, publicar meus feitos nos esquemas do sistema? Eu tinha dinheiro suficiente para fazer o que eu quisesse, e pouco a pouco comecei a planejar este torneio excepcional, do qual eu seria o único expectador, e os jogadores, mais do que o empenho advindo do desejo de fama e dinheiro, lutariam por suas próprias vidas, como nos melhores tempos de meus antepassados, os Césares romanos.

E aqui estamos, senhores! Antes do fim desta noite, um de vocês será um herói precursor de um novo mundo para os videojogos, e os demais serão mártires de uma causa que todos amamos. Agora descansem; logo os adversários de vocês – bem como os primeiros mortos – estarão definidos. Ao que vencer, os prêmios prometidos. Como não haverá segundo ou terceiro lugar vivo para receber o prêmio, o primeiro e único vencedor levará o dinheiro e os consoles dos demais. Ah, e o prêmio maior, embora eu não saiba o que uns miseráveis como vocês possam fazer com isso: A vida!

Após a fala do psicopata, transcorreu algo em torno de uma hora e meia ou pouco mais, antes de minha tela se reacender. Tentando tirar o foco de minha dor e desconforto, eu tentava imaginar que outros jogos poderiam ter caído para os demais jogadores, dentro do tal universo de vinte possíveis. Mas logo a angústia retomava o controle, e eu chorava fosse de desespero, fosse de raiva.

A próxima luta – pois já não eram jogos, a palavra jogo ficara totalmente esvaziada de sentido – se iniciaria. Após o clarão que dava como que o alerta para o início de uma nova rodada, o jogo Gundam Wing: Endless Duel apareceu. Mais uma vez tremi. Aquele era um jogo menor, baseado em um antigo anime japonês, e de meu conhecimento sabia apenas da versão para Super Nintendo – que eu só jogara durante um final de semana, ao alugar o game numa locadora. No susto, não pude perceber se aquele era o jogo do SNES, ou algum original de arcade, em geral mais elaborado.

No entanto, a partida não se realizou. Após uma espera de alguns minutos, com a tela do jogo aguardando o “start” que só podia ser dado pela central dos sequestradores, uma mensagem apareceu na tela: “Vitória por W.O.”. EM seguida, percebi que, numa das cabines, uma pessoa era retirada pelos seguranças, aparentemente desacordada. Pulei na cadeira ao ouvir a voz do maldito organizador, entre gargalhadas:

– Moleque de sorte, hahaha... Seu adversário aparentemente sofreu um infarto. Coitado, tão obeso. Bem, quem sou eu pra falar? Era muita pressão contra ele. E, como aqueles que poderiam substituí-lo infelizmente já não se encontram entre nós, você ganhou uma vaga na grande final... Sem lutar! Hahahaha... Aproveite sua sorte, herói... ou mártir?

Mais uma vez a tela se obscureceu, em uníssimo ao término do áudio. Percebi então que, durante toda aquela fala, eu inadvertidamente suspendera minha respiração, tal era a tensão e o horror. A taquicardia que sentia aumentou; e agora me faltava o ar.

Aguardei durante mais alguns bons minutos, talvez meia hora. Ocupei todo aquele tempo orando – clamando ao Deus de que eu sempre caçoara, e de que sabia tão pouco. Estava tão imerso em minha contemplação e pânico que sequer percebi o novo clarão do monitor – só fui despertar ao ouvir a música do jogo, na tela de apresentação.

Era Pit Fighter. Um jogo tosco, um jogo com poucas possibilidades de golpes. Um jogo com apenas três personagens selecionáveis. Um jogo detestável, ou ao menos um jogo que eu detestava.

Eu aguardava o tradicional som eletrônico que era o aviso das fichas sendo inseridas, mas isso não aconteceu. Ao invés, o jogo desapareceu da tela, dando lugar a dois rostos, numa espécie de tela dividida. O da esquerda era o do desgraçado que criara todo aquele inferno; o da direita, um rapaz com traços indígenas, era certamente o meu adversário. Sim, pois eu o conhecia – já o vira jogando num pequeno torneio realizado no Niterói Shopping. Era simplesmente o melhor jogador que eu já vira em ação, de perto. Por sua expressão abatida, quase aniquilada, imaginei como não estaria a minha.

– Prezados senhores, aqui estamos. Este é o maior torneio de jogos de luta já realizado no planeta, e jamais será superado – a não ser que eu consiga realizar um outro. Quem sabe nos EUA ou no Sudeste Asiático? De toda forma, aqui estão vocês. Dois campeões, dois ossos duros de roer. Dois desses marrudos que batem ponto na porta do fliperama, esperando o próximo pato, o próximo adversário. Que tal agora? Qual de vocês será o pato?

Gostaram do jogo que apareceu na telinha? Bem, é um jogo bem esquisito, hão de concordar. Mas esse torneio de vida e morte eu o criei para definir quem é o rei dos jogadores. E ele não poderia ser encerrado sem que o jogo adequado fosse o palco da disputa. Para a grande final, serão três partidas ou fichas. Quem vencer duas, vive.

Novamente a cara psicótica do desgraçado desapareceu, como se ele tivesse apertado imediatamente um botão ao encerrar seu vômito.

Na tela, era agora o jogo The King of Fighters ’97 que aparecia. Aquele mesmo cujo torneio eu vira o tal indígena faturar no Niterói Shopping, poucos meses atrás. Bem, eu não participara do torneio – quando soube, já estavam esgotadas as vagas, e eu fui com meus amigos apenas para observar a festa.

As fichas cantaram seu som e a sala de controle apertou os “starts”, jogando logo os cursores no ramdom. Deus, e agora?

Então me dei conta de algo. Eu tinha uma vantagem, nem que fosse inicial: Eu já vira aquele cara jogar. Eu o vira vencer diversas partidas, e conhecia o seu jogo, ao menos com seus bonecos de preferência.

Antes de eu terminar este raciocínio e tentar rememorar algumas das jogadas do cara, o ramdom já nos escolhia os personagens.

E a batalha final se iniciou. Meu oponente jogava como player 1 (controle da esquerda), e não bastasse isso o random lhe deu Shermie, Yamazaki e Ralph. A mim couberam Chizuro, Chang e Iori. Ele iniciou com Yamazaki. Quanto a mim, saltei logo na fogueira do tudo ou nada, e principiei com o meu melhor boneco, Iori. Comecei acertando um soco fraco, tentando pegá-lo de guarda aberta para encaixar um combo. Ele retrucou com um golpe com os dois botões fortes (golpe de imapcto) e um cháááá que me atingiu no ar, enquanto pulava para trás. Consegui ainda lhe acertar uma magia, mas ele logo saltou, iniciou um combo e me apanhou no especial. Meu sangue ficou pequeno, e meu melhor boneco estava sendo aniquilado. Ele se aproveitou de meu nervosismo e saltou sem golpear, me agarrando e aplicando a clássica cabeçada, dando fim a Iori Yagami.

Logo Chang entrou no mesmo loop da chuva de pancadas. Consegui reduzir seu sangue ao extremo, mas não o derrotei. Somente então entendi que talvez ele tivesse também posto seu melhor personagem no início, pois suas habilidades eram perfeitas. Mas, se meu nervosismo tinha custado meu melhor boneco – e agora o Chang de lambuja – o Yamazaki dele estava imparável. Com Chizuro, tive pouca chance, e já dava aquela partida como perdida, de qualquer forma. O cara me massacrou com um só boneco!

Na próxima partida ele recebeu Ryo Sakazaki, Kyo e Chizuro. E foi com ela que ele iniciou, contra minha Blue Mary. De fora, eu tinha ainda Leona e Choi: bem melhor que antes. Eu tentava controlar o nervosismo, ao mesmo tempo em que sabia que aquela era a partida de minha vida, pois se ele ganhasse a segunda de três, estava liquidada a peleja.

Talvez ele não fosse tão hábil com a Chizuro; desta vez, consegui derrotá-lo, embora com alguma dificuldade. Com Kyo Kusanagui, o personagem central daquele jogo ao lado de Iori, as manhas de meu adversário não se mostraram muito efetivas. Eu consegui defender todos os combos que ele tentou aplicar, e me aproveitei de suas falhas, ou das falhas do personagem, para golpeá-lo sempre que possível. Quando estava prestes a derrotá-lo, o carinha esboçou uma reação, me acertando um combo e quase um especial. Mas consegui eliminá-lo.

No terceiro round, talvez pelo alívio ou excesso de confiança de ter eliminado dois bonecos dele com um só dos meus, logo fui derrotado, pois ele saltou sobre mim e aplicou um combo que nem precisou completar-se, dado o restinho de sangue que me sobrara do round anterior.

A batalha de meu Choi contra o Ryo Sakazaki dele foi a mais equilibrada da partida. As manobras dispersivas, buscando um erro do adversário, foram constantes de lado a lado. Nenhum de nós conseguiu completar um combo sobre o outro, e a pancadaria avançou em ritmo de muitas defesas e acertos esporádicos. Ao fim, ele me venceu por pouca diferença.

No terceiro e último round ele jogou com aparentemente mais calma, esperando algum erro meu. Seu personagem tinha pouco sangue. Cheguei a me assombrar num momento em que, após deixá-lo “na alma”, ou seja, com um risquinho quase invisível na barra de life, ele conseguiu me aplicar um combo e um especial e deixou meu life na metade. Mas consegui executar uma sequência que, mesmo sendo defendida, lhe custou a ninharia de sangue que ainda tinha.

Após a vitória, sequer vibrei. Fechei os olhos e respirei fundo, pois a decisão daquele pesadelo, e de minha vida, estaria em jogo na última ficha. Um certo debate ético iniciado durante a pausa após a segunda luta continuava a arder em minha mente; eu pedia, implorava a Deus que me livrasse de tudo aquilo, mas não conseguia pedir diretamente por minha vitória, pois ela representaria a morte de meu adversário. E, por mais que quisesse sobreviver, não ousaria pedir isso a Deus. Assim, eu implorava por uma solução outra, que algo desse errado no maquinário daqueles canalhas, ou que a polícia aparecesse de surpresa. Não era possível alguém armar todo aquele circo diabólico, envolvendo tantas pessoas, e a coisa toda não babar.

Abri os olhos com o maldito som do random girando. O cara ficou com Andy Bogard, Robert Garcia e novamente Shermie. Minha equipe consistia de Billy Kane, Ryo Sakazaki e Sie Kensou. Fosse como fosse, ambos, eu pensei naquele momento, conseguíramos personagens fortes.

Eu comecei com Sie, pois tinha considerável habilidade com o personagem, e experimentei algo que, nos fliperamas, dera certo muitas vezes. Pois pouquíssimos jogadores realmente de contra utilizavam o personagem, que possui bastantes recursos defensivos e ofensivos. Assim, pelo inusitado e pela inexperiência em enfrentamentos, venci de cara muitos bons jogadores com aquele personagem.

Minha estratégia, mesmo contra aquele jogador que eu sabia ser melhor do que eu, deu resultado, pois consegui encurralá-lo até a metade da partida, e repeli seus avanços com magias ou com o golpe antiaéreo, seja para cima, seja para diante, apanhando-o em plena queda, quando tentava pular de maior distância para me atingir. Com um especial do estouro da bola de energia, finalizei sua Shermie, sem tomar nenhum dos agarrões. Minha estratégia dera certo.

Contra Andy Bogard as coisas se equilibraram. Me apanhando num dos pontos fracos de Sie, que é quando ele erra os antiaéreos, o cara me aplicou um combo seguido do especial com soco. Mesmo conseguindo ainda rebaixar o life dele para menos da metade, terminei derrotado, mais por meus erros que pelos méritos de meu adversário.

Agora era Andy contra Ryo. Consegui repelir alguns de seus ataques iniciais com os shoryukens mas, durante a trocação, novamente errei na aplicação deste antiaéreo e fui premiado com um especial. A partir dali senti minha garganta doentiamente seca enquanto recuava e tentava imaginar uma forma de penetrar no jogo de meu adversário, que retomava a iniciativa e me encurralava num canto, variando golpes altos e baixos, fortes e fracos, além dos golpes de impacto (os feitos apertando os dois botões fortes), conseguindo me atingir duas vezes com eles e dando fim a Ryo, e a uma parte de mim.

Ao ouvir o “fight” no round seguinte, arrisquei pesado com meu Billy Kane e iniciei dando o especial da roda de fogo; assim que fiz o movimento me arrependi, e com razão, pois o que temi logo aconteceu: meu adversário rolou por trás de mim e me acertou após eu lançar a roda de fogo na direção de onde não havia mais ninguém.

Utilizando o golpe de impacto, de grande alcance assim como outros golpes de Billy Kane, favorecido pelo taco ou bastão do personagem, foi a minha vez de repelir seus ataques subsequentes, e aplicar algumas boas sequências com aquele boneco que era de meus diletos.

Venci o round tendo perdido pouco mais de um terço do sangue.

Veio então o round final, de Billy Kane contra um dos personagens mais apelões daquela versão de The King of Fighters, Robert Garcia.

E eu dei tudo de mim. Com o corpo enregelado pelo frio do ar condicionado e pela perda de sangue; com a garganta seca pois o canudo de onde podíamos sugar água já não dava nada, e eu simplesmente não tinha com reclamar ou pedir água; com as pernas dormentes enquanto os dedos da mão direita doíam, e a curva entre o dedo polegar e o indicador da mão esquerda ardia, sensível após tanta força empregada nas manobras do joystick. Não fiz menção do poder daquele personagem, ou de quanto desse poder meu adversário saberia empregar. Entrei num estado – se é que ainda não estava – de êxtase, não de prazer, mas de desespero, possessão. Encurralei desde o princípio da partida meu oponente, aplicando golpes de impacto, rasteiras e bastonadas. Engatei um combo feito de voadora + chute forte + soco forte abaixado + frente e chute forte, seguido de outro dos combos simples de Billy, voadora + chute forte + gancho + especial, o especial que eu chamava de “vassourada de nunchakus”. Tirei bastante sangue daquele que, como eu, era só mais um desgraçado se afogando num pesadelo. Ele encetou uma reação aparentemente desesperada, pois passou a aplicar o golpe de “c” ao contrário + chute, um dos golpes apelões do Robert. Mas aquilo era algo de iniciantes, e todos eles haviam ficado já pelo caminho. Estourando uma bolinha de especial para rebater um desses golpes, imediatamente saltei sobre ele, aplicando no boneco desguarnecido uma sequência de voadora, soco fraco e chute forte. Encurralado no canto da parede, com o life pequeno, após derrubá-lo recuei para segura distância e dei o especial do círculo de fogo, no qual o personagem e gira por alguns segundos seu bastão incendiado. Minha ideia era conseguir tirar algum life dele, caso se levantasse defendendo; ou apanhá-lo na arapuca, pois se levantasse rolando, o rolamento tendia a acabar ainda dentro do raio de ação do círculo de fogo, pela distância estratégica que eu tomara. Mas ele, seja por nervosismo, erro simples ou mesmo desistência, levantou sem defender ou rolar, recebendo todo o impacto do especial.

Antes que o narrador do jogo terminasse de gritar o “k.o.”, apaguei, fosse por exaustão física e psíquica, fosse por algum narcótico introduzido em minhas veias.

Quando acordei ainda era noite. Uma rua de chão, úmida de alguma chuva recente, me servia de cama. Era a serventia de um local desolado, situado à beira mar, próximo a uma espécie de atracadouro clandestino ou píer. Levantei-me com grande esforço. Todo o meu corpo doía, mas a dor de cabeça, lancinante, era a mais dura de suportar. Ao meu lado percebi duas malas pretas. Abri uma delas, temeroso, mas esperando encontrar água, pois minha garganta estava como que dormente de sequidão. Percebi então que naquelas valises estavam os prêmios – dinheiro e videogames.

Coloquei algum dinheiro no bolso, recobrei parte de minhas forças e segui por aquela ruela arrastando as malas, pois possuíam rodinhas. Vários metros adiante cheguei a uma espécie de pequeno bar, ou birosca, onde três bêbados bebericavam cerveja ruim e destilados baratos. Mesmo bêbados, me olharam com espanto e desconfiança, mas me informaram o que lhes perguntei: eu estava nas proximidades da favela da Kelsons, no Rio de Janeiro. Me indicaram o caminho até o asfalto, ou “a estrada”.

Me vi num embate ético: decerto deveria ir até a polícia imediatamente; mas, e se eu fosse considerado culpado ou cúmplice de toda aquela loucura? E o dinheiro, aquele maldito mas sempre útil dinheiro, se lá aparecesse com ele, o mesmo seria certamente confiscado.

Eu estava fraco demais para tomar decisões. “Amanhã e água, amanhã e água”, minha mente repetia, violentada. Avançando pela estrada, consegui que um táxi parasse, e nele embarquei. Em casa, não sabendo o que fazer, me pus a escrever este relato, com todos os detalhes possíveis, para não esquecer de nada, antes de ser novamente engolido pela exaustão.

São cinco e quarenta e dois da manhã; minha mãe e meu padrasto devem estar no forrozão. Logo chegam, bêbados. Vou dormir, e queira Deus que nunca mais acorde. Ou me permita reencontrar aquele desgraçado, e despedaçá-lo num novo jogo.


Sammis Reachers

 

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Este conto faz parte do livro Fabulário Índigo. Disponível em formato impresso (aqui) e e-book (pela Amazon, aqui).


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