Todo
fliperama tem desses. Nós mesmos o somos, quando duros: O observador, o que
fica vezes horas observando outros jogarem, em silêncio, mais ou menos
interessado. Vezes outras observam, observamos as máquinas jogando “sozinhas”,
no modo demonstração.
Por
isso, aquele indivíduo, embora já mais adulto que adolescente, só atraiu a
atenção por não ser do bairro. Mas isso era o de menos, as ruas eram
movimentadas e a fama daquele point, por sempre receber primeiro as
novidades, as novas placas de jogos vindas direto de São Paulo, atraía
expedicionários de largo chão.
Era
um dia inspirado: Após surrar nada menos que oito formidáveis oponentes no The
King of Fighters ’97, pulei para o Mortal Kombat e segui surrando
quantos havia – até o menestrel do jogo, Maurício, desta vez espancado com
desenvoltura.
O
ânimo era tanto naquela sexta-feira alcançando a noite que fomos para as
máquinas B, os jogos divertidos, mas não tão solicitados: A disputa comunitária
se transferiu primeiro para uma cabine de World Heroes Perfect, depois
para uma de Samurai Shodown. E ali, meus pares ficaram pequenos naquela
sexta, esmurrados e guilhotinados para além do normal da balança. Bem, na
verdade aquilo era meio de praxe já. Eu era um completo aficionado (meus
detratores me diziam viciado) em jogos eletrônicos, notadamente os de luta;
passava horas dos dias, todos os dias, nos fliperamas. Por vezes a fissura era
tanta que eu esperava algum deles abrir, sentado à porta já antes das sete da
manhã.
Naquela
noite, ao rumarmos para as tais máquinas, percebi que o “olheiro” nos
acompanhara. Observava agora atento, eu aplicando sopapos e magias no Samurai
Shodown. De tanto vê-lo ali, a observar em silêncio os trâmites da jogatina,
ousei desafiá-lo:
–
E aí meu amigo, bora? Quer jogar um pouco?
Ele
quebrou a impassividade com um meio sorriso, e me deu um tipo de cartão ou flier.
Era na verdade um convite:
THE ARCADE
FIRE
GRANDE
TORNEIO UNDERGROUND
APENAS
JOGOS DE LUTA
RALLY DE
20 JOGOS ALEATÓRIOS
Torneio
fechado – Apenas
24 jogadores
1º colocado: R$ 6.000 e NEO GEO
CD; 2 º: R$ 3.000 e NEO GEO CD;
3 º: R$ 2.000 e NEO GEO CD.
|
Número:
______19_______.
Torneio
justo e às cegas: Jogos e personagens aleatórios
Se você
tem este bilhete, considere-se convidado! Ligar para (021) 701-7766.
Hoje,
9 de outubro de 1997, o salário mínimo vale míseros 120 reais. Assim, aquela
premiação dispensava comentários. A numeração à caneta, “19”, num torneio com
apenas 24 competidores, me perturbou. Seria tudo aquilo uma piada? Mas, caramba,
eu era um dos melhores, senão o melhor jogador do talvez principal fliperama da
cidade. E naquele dia estava absoluto, exuberante no joystick! Decerto o
carinha não estava ali, observando há mais de três horas, à toa!
Atônito
sorvendo e digerindo as informações, quando retomei ao indivíduo e perguntei se
havia taxa de participação, comum nos incipientes torneios que eu já vira, ele
já estava à porta do fliperama, a tempo de dizer: “Não. Um patrocinador rico
está bancando tudo.”
Resolvi
não mostrar o convite para outros amigos, até ver onde aquilo tudo daria. A
concorrência era forte na cidade, e só de participar de algo assim, minha fama
tomaria as ruas com fôlego redobrado. Mas, se fosse uma brincadeira, uma
“pegadinha”, eu iria passar uma vergonha colossal...
Dia
seguinte, liguei para o número. Uma voz feminina me atendeu, solícita e
atenciosa. Parecia mesmo uma secretária! Ou o negócio era sério mesmo, ou era
alguma treta para arrancar nosso dinheiro, como os cursos preparatórios que
carinhas como aquele iam oferecer nas escolas.
A
moça pegou meus dados, e informou que o torneio seria realizado num endereço na
zona portuária do Rio de Janeiro. Conhecia o lugar de passagem; estranho lugar,
abandonado e sombrio, com uma pegada de filmes americanos made in anos
80. Eu era de São Gonçalo, município da região metropolitana do Rio de Janeiro,
e a atendente me informou que a organização não ofereceria transporte, e eu
deveria para lá me dirigir por minha conta. Apenas competidores de outros
Estados teriam as despesas cobertas. Outros Estados!
Nos
poucos dias antes da data especificada em meu convite, me pus a treinar. Vinte
jogos de luta diferentes – bem, era coisa pra cacilda! Comecei a frequentar com
redobrada sofreguidão locadoras de games, fliperamas de shoppings, consultar
revistas – as que eu colecionava e outras, emprestadas de colegas. Um ou outro, que me vira receber o convite,
de quando em vez perguntava, “e a parada lá?”, “mixou, era enrolação”, eu
desconversava.
No
dia e hora aprazados, lá estava eu em frente a um alto portão de ferro, na zona
portuária. Havia outros jovens e até adultos ali, gente de todo feitio.
Acreditei mesmo ver um japinha que parecia o articulista de uma conhecida
revista de games da época. Bem, se até ele estava ali, o negócio seria à vera!
No
minuto exato que nos fora informado (10h15), o pesado portão se abriu, e
adentramos a um sombrio galpão. Lá dentro, sentamos em algumas cadeiras de
ferro, dessas de bar, novas, e uma mulher passou a nos explicar detalhes do
evento. Uma coisa, mais que tudo, me chamava a atenção: A quantidade de
seguranças – pois, pela estatura, porte e movimentos, só podiam ser isso mesmo
– presentes no local.
Nossos
dados e documentos foram novamente conferidos, e então o funcionamento do
torneio foi passado a limpo. Ele aconteceria por chaveamento, precedido de
sorteio. Assim, os primeiros combates seriam sorteados, e os demais seguiriam o
chaveamento programado.
Estávamos
ansiosos para ver as máquinas, quando fomos solicitados a levantar e acompanhar
o nosso mestre de cerimônias. Mas, ao passar por uma porta, que eu acreditava
daria acesso a outro galpão, onde teríamos as cabines de fliperama ou o que
fossem, me deparei com o mar. E um baita iate ancorado no atracadouro.
O
nosso guia então revelou que o torneio aconteceria a bordo do navio – em alto
mar. Ouve um burburinho geral. Uns acharam a informação emocionante; outros
ficaram receosos – talvez alguns daqueles nerds nem soubessem nadar! De minha
parte, a aura de mistério me excitou ainda mais.
Adentramos
então ao luxuoso barco, sendo acomodados num salão principal do mesmo, onde
fomos soberbamente servidos com canapés, doces, bebidas sortidas. Agora a
felicidade era geral; a ansiedade emprestava risinhos animados a todos os
rostos.
Após
nos fartarmos, fomos levados então a nossos aposentos – pequenas cabines
individuais, com uma pequena cama, um cabideiro e uma mesinha. Bem apertado, mas,
e daí? Uma aventura daquelas não se vive todo dia.
Mesmo
com toda a excitação e ansiedade, e embora fosse pouco depois do horário de
almoço, surpreendentemente consegui dormir – na verdade, ao me sentar na cama,
apaguei.
* * *
Quando
acordei, um cenário inesperado me envolvia.
Eu
estava sentado numa fria e desconfortável cadeira de ferro, tendo diante de mim
uma cabine de fliperama, uma daquelas cabines “pela metade”, chamada também de
bartop. Minhas duas mãos já estavam sobre o painel da máquina, e não podiam de
ali sair: elas estavam algemadas. Sim, presas, assim como meu corpo, afivelado
à cadeira, preso por umas três faixas como essas de cinto de segurança dos
automóveis. Minhas pernas estavam igualmente aferradas aos pés da cadeira.
Mas
o mais aterrorizante era uma espécie de mangueira ou tubulação, fina, “colada”
em meu pescoço. Eu não conseguia ver como aquilo estava afixado, mas, pela dor
que sentia, imaginei que havia uma agulha enfiada em meu pescoço, e aquele tubo
era para bombear algo para meu corpo, talvez soro ou medicações – ou sonífero, que
eu agora imaginava ter sido a causa de meu “desmaio” após o almoço.
Tentei
imaginar que tudo era apenas um sonho, fruto de minha excitação e do choque de
encontro a tanta novidade. Mas a dor em meu pescoço, a dor nos pulsos ao tentar
me livrar das algemas, não me deixava debitar aquilo na conta de Oneiros.
Foi
só então que olhei à minha volta e percebi que eu estava selado numa pequena
cabine toda feita de vidro transparente. Como aquela minha célula, haviam
outras vinte e três, dispostas em círculo, e nelas estavam o que deveriam ser
os demais competidores.
Um
forte clarão veio então do meio daquele lugar em volta do qual estávamos
espalhados. Eram as luzes de oito telões, nos quais um indivíduo apareceu.
“Boa
noite, senhores. É um prazer tê-los aqui neste torneio. Eu sou o seu anfitrião.
Meu nome não importa, mas podem me chamar de Mister Big. Eu sou um
admirador dos games em geral, e grande apreciador de jogos de luta. Este
torneio, o mais justo e mais surpreendente que jamais houve ou haverá, decidirá
quem é o maior dos jogadores do Brasil. Gastei bastante dinheiro enviando
olheiros para diversos Estados, em busca dos melhores dentre os melhores – e
aqui estão vocês.
Como
dito no convite que receberam, os jogos serão escolhidos aleatoriamente, assim
como o seu personagem em tais jogos. Caso o jogo não tenha a modalidade de
escolha random ou aleatória, a organização sorteará um dos personagens
para cada um dos combatentes.
Senhores,
antes de iniciarmos, deixem-me esclarecer a questão mais importante, aquela que
fará deste torneio algo único – este é um torneio de fliperama de vida ou
morte. Sim; necessário é dizer que somente um de vocês sairá daqui com
vida. Veem essas agulhas enfiadas no pescoço de vocês? A cada derrota, uma
quantidade de sangue será drenada do corpo do perdedor. Uma derrota total lhe
jogará numa repescagem, e lhe custará um pouco mais de sangue; perdida essa
repescagem, haverá ainda uma repescagem final. Derrotado aqui, você deixará o
torneio – e a vida.
E
mais: A cada round perdido, um pouco, muito pouco, de seu sangue será
drenado; assim, mesmo vencendo a partida, pode-se perder sangue no processo – a
não ser que você não perca nenhum round.
Um
grande estudioso dos jogos, provavelmente um desconhecido de vocês, Johan
Huizinga, dizia que “o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida
dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras
livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si
mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência
de ser diferente da ‘vida cotidiana’”.
E aqui estão vocês, voluntários cobiçosos e desejosos de, nesta ebulição
de tensão, dor e alegria, mostrar que são os melhores! Tomei para mim o papel
de lhes proporcionar o melhor e maior dos campeonatos possível.
Dito
isto, desejo boa sorte a todos. E repito, para finalizar: Isto não é uma
brincadeira, simulação ou pegadinha. Suas vidas dependem de sua perícia nos
manetes.”
Àquela
altura eu suava e chorava; não conseguia saber da reação dos demais jogadores,
pois as placas de vidro não permitiam que sons entrassem ou saíssem, e tudo que
ouvia vinha de um circuito de som interno. Mas era possível ver alguns dos
competidores se debatendo desesperadamente, tentando – inutilmente – se
libertar.
Os
telões se apagaram e depois acenderam – e já estava na tela a tabela dos
confrontos, mostrando o jogo e o adversário inicial de cada contendor.
O
pesadelo já mostrava suas garras: o torneio para mim começaria com o jogo Fighter’s
History, um jogo medíocre, que saíra apenas para o Super Nintendo e, pior,
a que eu tivera acesso ou jogara apenas umas três vezes. Era torcer para meu
adversário nunca ter visto o jogo, ou ser um jogador inferior. No fundo eu
mantinha ferozmente viva a esperança de que tudo aquilo fosse uma imensa
brincadeira de mal gosto, mas eu não podia e nem iria pagar pra ver.
Segundos
depois, a tela em minha frente se acendeu, e o sistema escolheu um personagem –
Feilin – sem meu comando, já que o jogo aparentemente não tinha sistema de
random.
Mais
do que de socos, chutes ou golpes especiais, um jogo de luta depende de timing,
e cada jogo possui seu timing único. O tempo certo de bater, defender,
esquivar-se – isso cria o jogador vitorioso.
Talvez
por desespero, talvez imperícia, meu adversário iniciou o jogo apertando
repetidas vezes o soco fraco, como quem busca identificar os botões. Por sorte
eu estava um pouco além daqueles rudimentos, e já pulei sobre ele acertando a
sequência clássica de voadora, soco e rasteira. No restante daquele e do segundo
round, foi fácil vencer meu oponente. Assustado e exaltado após a partida,
procurei observar os jogadores à minha volta, mas era impossível saber qual
deles fora o meu contendente; embora os nomes tenham aparecido no telão, quando
do sorteio das partidas iniciais, não havia nada nas cabines que indicasse o
nome de seus ocupantes, e os jogos aconteceram ao mesmo tempo, ou seja, todos
jogaram juntos. Meu estado de horror e euforia durou menos de um minuto, para
logo entrar em suspensão, pois em seguida foi a vez do jogo Breakers – e
eu me senti aliviado. Um game de luta da Visco, sobre o qual eu tinha algum
domínio. De toda forma, não era um jogo antigo (fora lançado em 1996) nem tão
desconhecido, e isso poderia contar contra mim...
Como
o anterior, o jogo não possuía random, e pelo sorteio me coube o personagem
Maherl, um muçulmano gordinho e bastante apelão. Ao meu adversário coube Rila, espécie
de mulher-fera, musculosa e descabelada. Iniciei a partida pulando para trás e
lançando um golpe em que o personagem atira sua espada – uma cimitarra. Meu
adversário pulou sobre a mesma, para a frente. Eu consegui alcançá-lo enquanto
caia, e emendei à voadora que lhe atingiu desprevenido, dois socos fracos e um
soco forte. Na sequência tentei lançar o golpe em que o personagem cospe uma nuvem
de fogo (C pra frente + soco fraco), mas aí foi a vez de meu adversário pular e
me acertar a voadora e um chute, seguido de rasteira. Me levantei defendendo,
mas logo cometi outro erro: Saltei para trás, para me reorganizar, e neste
momento o meu oponente liberou o especial de Rila, que brilhou, saltando à
distância sobre meu pescoço, e aplicando diversas mordidas. Meu oponente
mostrava por que passara para a segunda fase, pois aparentemente conhecia
aquele jogo, e bem o suficiente para me derrotar no primeiro round.
Senti
então o que temia – um leve movimento ou sensação no pescoço, oriunda da sucção
empreendida pela agulha. Vi um pouco de meu sangue fluir pela fina mangueira –
sabe-se lá para onde.
Meu
sangue fluindo para fora de mim teve o efeito do terror. E, paradoxalmente,
como que me vivificou ao invés de debilitar:
Nos
próximos dois rounds, não dei chance para o outro jogador, aplicando
seguidamente combos – aprendidos no calor de tentativa e erros do momento –
seguidos de golpe especial.
Por
2 rounds a 1, venci aquela partida. Aparentemente não se permitia aos jogadores
tempo para descanso, pois a tela do jogo em minha cabine sumiu e logo apareceu
a abertura de Super Street Fighter 2 Turbo. Alucinado pela adrenalina,
só então reparei minhas mãos, e vi que elas tremiam. Mas naquele jogo eu era
bastante experiente. Bem, eu e todos os jogadores do mundo. O random me jogou
no colo Shun Li, personagem mediana; temi que meu adversário ganhasse de presente
Ryu ou Ken, os apelões da franquia, mas a sorte me ajudou, e ele ficou com o também
mediano Dee Jay. Minha ilusão durou menos de um minuto; num descuido enquanto
lançava a magia da chinesa, meu adversário saltou sobre minha guarda aberta,
entabulando voadora + soco + chute + especial. Fosse quem fosse, era um ótimo
jogador. Me dei conta então que aquele já era o terceiro jogo ao qual eu
avançara sem perder partidas, e era natural e esperado que o nível dos
jogadores crescesse. Mais uma vez senti a sucção em meu pescoço. Maldito dia em
que desafiei aquele olheiro, maldito dia em que aceitei aquele convite, sem
desconfiar ou sem desconfiar o suficiente, cheio de mim, me achando o bonzão, o
maioral!
Suava
frio e tremia, enquanto se iniciava o segundo round. Meu adversário pulou sobre
mim sem chutar ou socar, e ao cair – manobra clássica – imediatamente me
agarrou num balão. Em seguida tomou distância, lançando magias, intercalando
magia feita com soco forte (rápida) e fraco (lenta), buscando um erro meu. E
conseguiu, ou ele ou meu desespero, pois ao saltar para a frente, no objetivo
de alcançá-lo, cai sobre uma das magias. Se perdesse aquele round, cairia na
tal repescagem, não sem antes perder boa dose de meu sangue. Deus, que tipo de
pesadelo era aquele!!!
Arrancando
forças sabe-se de onde, tentei recuperar o sangue frio que me fizera famoso nos
fliperamas. Uma dupla sequência de voadora + soco forte + rasteira ajudou a
empatar as barras de life, e um especial decidiu o round a meu favor. No
terceiro round, menos apavorado, foi a minha vez de administrar o combate e
aguardar os erros de meu adversário, que vieram.
Após
minha vitória, eu procurava manter a calma e parar de tremer, aguardando já o
próximo jogo e torcendo para ser um jogo que eu dominasse, mas a tela apagou-se
por coisa de uns três minutos. Após isso, a figura do desgraçado que se
anunciara como organizador do evento apareceu. Ele parabenizava a mim e a outro
jogador, por sermos os únicos a vencer três partidas consecutivas, sem perder.
Agora, ele dizia, deveríamos esperar que as repescagens fossem realizadas, para
definir quais seriam nossos adversários. Enquanto isso, como numa macabra
concessão, acabou revelando um pouco mais de si – e
de sua loucura:
–
Vocês devem estar se perguntando o motivo de tudo isso. Bem, assim como vocês,
eu sou um viciado, um completo viciado em jogos. E meu maior prazer é ver a
galera jogando contra.
Meus
pais faleceram num acidente de helicóptero, há coisa de um ano. Um acidente que
me custou quase dois anos de economias. Eu herdei toda a fortuna que eles me
impediam de usufruir como eu desejava. Desde então, comecei a imaginar a
criação de um torneio. Seria antes um torneio normal, que eu objetivava que
fosse o maior do Brasil, e estava disposto a empregar dinheiro de minha farta
herança nele. Mas algumas tratativas com uma rede de TV me decepcionaram; mesmo
pagando, eles se recusaram a televisionar meu evento, alegando que “videogames
não são esporte”.
Mas
eu sou um visionário, e transformei minha decepção inicial em algo maior: Para
que criar um torneio simples, como se fosse de tênis ou futebol? Eles estavam
enganados – aquilo era sim um esporte, e o mais radical deles, um que dominará
o futuro, todos os futuros. E eu seria o paladino, sobre o sangue de vocês,
honrados mártires, a provar! E mais, para quê televisionar, publicar meus
feitos nos esquemas do sistema? Eu tinha dinheiro suficiente para fazer o que
eu quisesse, e pouco a pouco comecei a planejar este torneio excepcional, do
qual eu seria o único expectador, e os jogadores, mais do que o empenho advindo
do desejo de fama e dinheiro, lutariam por suas próprias vidas, como nos
melhores tempos de meus antepassados, os Césares romanos.
E
aqui estamos, senhores! Antes do fim desta noite, um de vocês será um herói
precursor de um novo mundo para os videojogos, e os demais serão mártires de
uma causa que todos amamos. Agora descansem; logo os adversários de vocês – bem
como os primeiros mortos – estarão definidos. Ao que vencer, os prêmios
prometidos. Como não haverá segundo ou terceiro lugar vivo para receber
o prêmio, o primeiro e único vencedor levará o dinheiro e os consoles dos
demais. Ah, e o prêmio maior, embora eu não saiba o que uns miseráveis como
vocês possam fazer com isso: A vida!
Após
a fala do psicopata, transcorreu algo em torno de uma hora e meia ou pouco
mais, antes de minha tela se reacender. Tentando tirar o foco de minha dor e
desconforto, eu tentava imaginar que outros jogos poderiam ter caído para os
demais jogadores, dentro do tal universo de vinte possíveis. Mas logo a
angústia retomava o controle, e eu chorava fosse de desespero, fosse de raiva.
A
próxima luta – pois já não eram jogos, a palavra jogo ficara totalmente
esvaziada de sentido – se iniciaria. Após o clarão que dava como que o alerta
para o início de uma nova rodada, o jogo Gundam Wing: Endless Duel
apareceu. Mais uma vez tremi. Aquele era um jogo menor, baseado em um antigo
anime japonês, e de meu conhecimento sabia apenas da versão para Super Nintendo
– que eu só jogara durante um final de semana, ao alugar o game numa locadora.
No susto, não pude perceber se aquele era o jogo do SNES, ou algum original de
arcade, em geral mais elaborado.
No
entanto, a partida não se realizou. Após uma espera de alguns minutos, com a
tela do jogo aguardando o “start” que só podia ser dado pela central dos
sequestradores, uma mensagem apareceu na tela: “Vitória por W.O.”. EM seguida,
percebi que, numa das cabines, uma pessoa era retirada pelos seguranças,
aparentemente desacordada. Pulei na cadeira ao ouvir a voz do maldito
organizador, entre gargalhadas:
–
Moleque de sorte, hahaha... Seu adversário aparentemente sofreu um infarto.
Coitado, tão obeso. Bem, quem sou eu pra falar? Era muita pressão contra ele.
E, como aqueles que poderiam substituí-lo infelizmente já não se encontram
entre nós, você ganhou uma vaga na grande final... Sem lutar! Hahahaha...
Aproveite sua sorte, herói... ou mártir?
Mais
uma vez a tela se obscureceu, em uníssimo ao término do áudio. Percebi então
que, durante toda aquela fala, eu inadvertidamente suspendera minha respiração,
tal era a tensão e o horror. A taquicardia que sentia aumentou; e agora me
faltava o ar.
Aguardei
durante mais alguns bons minutos, talvez meia hora. Ocupei todo aquele tempo
orando – clamando ao Deus de que eu sempre caçoara, e de que sabia tão pouco.
Estava tão imerso em minha contemplação e pânico que sequer percebi o novo clarão
do monitor – só fui despertar ao ouvir a música do jogo, na tela de
apresentação.
Era
Pit Fighter. Um jogo tosco, um jogo com poucas possibilidades de golpes.
Um jogo com apenas três personagens selecionáveis. Um jogo detestável, ou ao
menos um jogo que eu detestava.
Eu
aguardava o tradicional som eletrônico que era o aviso das fichas sendo
inseridas, mas isso não aconteceu. Ao invés, o jogo desapareceu da tela, dando
lugar a dois rostos, numa espécie de tela dividida. O da esquerda era o do
desgraçado que criara todo aquele inferno; o da direita, um rapaz com traços indígenas,
era certamente o meu adversário. Sim, pois eu o conhecia – já o vira jogando
num pequeno torneio realizado no Niterói Shopping. Era simplesmente o melhor
jogador que eu já vira em ação, de perto. Por sua expressão abatida, quase
aniquilada, imaginei como não estaria a minha.
–
Prezados senhores, aqui estamos. Este é o maior torneio de jogos de luta já
realizado no planeta, e jamais será superado – a não ser que eu consiga
realizar um outro. Quem sabe nos EUA ou no Sudeste Asiático? De toda forma,
aqui estão vocês. Dois campeões, dois ossos duros de roer. Dois desses marrudos
que batem ponto na porta do fliperama, esperando o próximo pato, o próximo
adversário. Que tal agora? Qual de vocês será o pato?
Gostaram
do jogo que apareceu na telinha? Bem, é um jogo bem esquisito, hão de concordar.
Mas esse torneio de vida e morte eu o criei para definir quem é o rei dos
jogadores. E ele não poderia ser encerrado sem que o jogo adequado fosse o
palco da disputa. Para a grande final, serão três partidas ou fichas. Quem
vencer duas, vive.
Novamente
a cara psicótica do desgraçado desapareceu, como se ele tivesse apertado
imediatamente um botão ao encerrar seu vômito.
Na
tela, era agora o jogo The King of Fighters ’97 que aparecia. Aquele
mesmo cujo torneio eu vira o tal indígena faturar no Niterói Shopping, poucos
meses atrás. Bem, eu não participara do torneio – quando soube, já estavam
esgotadas as vagas, e eu fui com meus amigos apenas para observar a festa.
As
fichas cantaram seu som e a sala de controle apertou os “starts”, jogando logo
os cursores no ramdom. Deus, e agora?
Então
me dei conta de algo. Eu tinha uma vantagem, nem que fosse inicial: Eu já vira
aquele cara jogar. Eu o vira vencer diversas partidas, e conhecia o seu jogo,
ao menos com seus bonecos de preferência.
Antes
de eu terminar este raciocínio e tentar rememorar algumas das jogadas do cara,
o ramdom já nos escolhia os personagens.
E
a batalha final se iniciou. Meu oponente jogava como player 1 (controle da
esquerda), e não bastasse isso o random lhe deu Shermie, Yamazaki e Ralph. A
mim couberam Chizuro, Chang e Iori. Ele iniciou com Yamazaki. Quanto a mim,
saltei logo na fogueira do tudo ou nada, e principiei com o meu melhor boneco,
Iori. Comecei acertando um soco fraco, tentando pegá-lo de guarda aberta para encaixar
um combo. Ele retrucou com um golpe com os dois botões fortes (golpe de
imapcto) e um cháááá que me atingiu no ar, enquanto pulava para trás.
Consegui ainda lhe acertar uma magia, mas ele logo saltou, iniciou um combo e
me apanhou no especial. Meu sangue ficou pequeno, e meu melhor boneco estava
sendo aniquilado. Ele se aproveitou de meu nervosismo e saltou sem golpear, me
agarrando e aplicando a clássica cabeçada, dando fim a Iori Yagami.
Logo
Chang entrou no mesmo loop da chuva de pancadas. Consegui reduzir seu sangue ao
extremo, mas não o derrotei. Somente então entendi que talvez ele tivesse
também posto seu melhor personagem no início, pois suas habilidades eram
perfeitas. Mas, se meu nervosismo tinha custado meu melhor boneco – e agora o
Chang de lambuja – o Yamazaki dele estava imparável. Com Chizuro, tive pouca
chance, e já dava aquela partida como perdida, de qualquer forma. O cara me
massacrou com um só boneco!
Na
próxima partida ele recebeu Ryo Sakazaki, Kyo e Chizuro. E foi com ela que ele
iniciou, contra minha Blue Mary. De fora, eu tinha ainda Leona e Choi: bem
melhor que antes. Eu tentava controlar o nervosismo, ao mesmo tempo em que
sabia que aquela era a partida de minha vida, pois se ele ganhasse a segunda de
três, estava liquidada a peleja.
Talvez
ele não fosse tão hábil com a Chizuro; desta vez, consegui derrotá-lo, embora
com alguma dificuldade. Com Kyo Kusanagui, o personagem central daquele jogo ao
lado de Iori, as manhas de meu adversário não se mostraram muito efetivas. Eu
consegui defender todos os combos que ele tentou aplicar, e me aproveitei de
suas falhas, ou das falhas do personagem, para golpeá-lo sempre que possível.
Quando estava prestes a derrotá-lo, o carinha esboçou uma reação, me acertando
um combo e quase um especial. Mas consegui eliminá-lo.
No
terceiro round, talvez pelo alívio ou excesso de confiança de ter eliminado
dois bonecos dele com um só dos meus, logo fui derrotado, pois ele saltou sobre
mim e aplicou um combo que nem precisou completar-se, dado o restinho de sangue
que me sobrara do round anterior.
A
batalha de meu Choi contra o Ryo Sakazaki dele foi a mais equilibrada da
partida. As manobras dispersivas, buscando um erro do adversário, foram
constantes de lado a lado. Nenhum de nós conseguiu completar um combo sobre o
outro, e a pancadaria avançou em ritmo de muitas defesas e acertos esporádicos.
Ao fim, ele me venceu por pouca diferença.
No
terceiro e último round ele jogou com aparentemente mais calma, esperando algum
erro meu. Seu personagem tinha pouco sangue. Cheguei a me assombrar num momento
em que, após deixá-lo “na alma”, ou seja, com um risquinho quase invisível na
barra de life, ele conseguiu me aplicar um combo e um especial e deixou meu
life na metade. Mas consegui executar uma sequência que, mesmo sendo defendida,
lhe custou a ninharia de sangue que ainda tinha.
Após
a vitória, sequer vibrei. Fechei os olhos e respirei fundo, pois a decisão
daquele pesadelo, e de minha vida, estaria em jogo na última ficha. Um certo
debate ético iniciado durante a pausa após a segunda luta continuava a arder em
minha mente; eu pedia, implorava a Deus que me livrasse de tudo aquilo, mas não
conseguia pedir diretamente por minha vitória, pois ela representaria a morte
de meu adversário. E, por mais que quisesse sobreviver, não ousaria pedir isso
a Deus. Assim, eu implorava por uma solução outra, que algo desse errado no
maquinário daqueles canalhas, ou que a polícia aparecesse de surpresa. Não era
possível alguém armar todo aquele circo diabólico, envolvendo tantas pessoas, e
a coisa toda não babar.
Abri
os olhos com o maldito som do random girando. O cara ficou com Andy Bogard,
Robert Garcia e novamente Shermie. Minha equipe consistia de Billy Kane, Ryo
Sakazaki e Sie Kensou. Fosse como fosse, ambos, eu pensei naquele momento,
conseguíramos personagens fortes.
Eu
comecei com Sie, pois tinha considerável habilidade com o personagem, e
experimentei algo que, nos fliperamas, dera certo muitas vezes. Pois
pouquíssimos jogadores realmente de contra utilizavam o personagem, que
possui bastantes recursos defensivos e ofensivos. Assim, pelo inusitado e pela
inexperiência em enfrentamentos, venci de cara muitos bons jogadores com aquele
personagem.
Minha
estratégia, mesmo contra aquele jogador que eu sabia ser melhor do que eu, deu
resultado, pois consegui encurralá-lo até a metade da partida, e repeli seus
avanços com magias ou com o golpe antiaéreo, seja para cima, seja para diante,
apanhando-o em plena queda, quando tentava pular de maior distância para me
atingir. Com um especial do estouro da bola de energia, finalizei sua Shermie,
sem tomar nenhum dos agarrões. Minha estratégia dera certo.
Contra
Andy Bogard as coisas se equilibraram. Me apanhando num dos pontos fracos de
Sie, que é quando ele erra os antiaéreos, o cara me aplicou um combo seguido do
especial com soco. Mesmo conseguindo ainda rebaixar o life dele para menos da
metade, terminei derrotado, mais por meus erros que pelos méritos de meu
adversário.
Agora
era Andy contra Ryo. Consegui repelir alguns de seus ataques iniciais com os
shoryukens mas, durante a trocação, novamente errei na aplicação deste
antiaéreo e fui premiado com um especial. A partir dali senti minha garganta
doentiamente seca enquanto recuava e tentava imaginar uma forma de penetrar no
jogo de meu adversário, que retomava a iniciativa e me encurralava num canto,
variando golpes altos e baixos, fortes e fracos, além dos golpes de impacto (os
feitos apertando os dois botões fortes), conseguindo me atingir duas
vezes com eles e dando fim a Ryo, e a uma parte de mim.
Ao
ouvir o “fight” no round seguinte, arrisquei pesado com meu Billy Kane e
iniciei dando o especial da roda de fogo; assim que fiz o movimento me
arrependi, e com razão, pois o que temi logo aconteceu: meu adversário rolou
por trás de mim e me acertou após eu lançar a roda de fogo na direção de onde
não havia mais ninguém.
Utilizando
o golpe de impacto, de grande alcance assim como outros golpes de Billy Kane,
favorecido pelo taco ou bastão do personagem, foi a minha vez de repelir seus
ataques subsequentes, e aplicar algumas boas sequências com aquele boneco que
era de meus diletos.
Venci
o round tendo perdido pouco mais de um terço do sangue.
Veio
então o round final, de Billy Kane contra um dos personagens mais apelões
daquela versão de The King of Fighters, Robert Garcia.
E
eu dei tudo de mim. Com o corpo enregelado pelo frio do ar condicionado e pela
perda de sangue; com a garganta seca pois o canudo de onde podíamos sugar água
já não dava nada, e eu simplesmente não tinha com reclamar ou pedir água; com
as pernas dormentes enquanto os dedos da mão direita doíam, e a curva entre o
dedo polegar e o indicador da mão esquerda ardia, sensível após tanta força
empregada nas manobras do joystick. Não fiz menção do poder daquele personagem,
ou de quanto desse poder meu adversário saberia empregar. Entrei num estado –
se é que ainda não estava – de êxtase, não de prazer, mas de desespero,
possessão. Encurralei desde o princípio da partida meu oponente, aplicando
golpes de impacto, rasteiras e bastonadas. Engatei um combo feito de voadora +
chute forte + soco forte abaixado + frente e chute forte, seguido de outro dos
combos simples de Billy, voadora + chute forte + gancho + especial, o especial
que eu chamava de “vassourada de nunchakus”. Tirei bastante sangue daquele que,
como eu, era só mais um desgraçado se afogando num pesadelo. Ele encetou uma
reação aparentemente desesperada, pois passou a aplicar o golpe de “c” ao
contrário + chute, um dos golpes apelões do Robert. Mas aquilo era algo de
iniciantes, e todos eles haviam ficado já pelo caminho. Estourando uma bolinha
de especial para rebater um desses golpes, imediatamente saltei sobre ele,
aplicando no boneco desguarnecido uma sequência de voadora, soco fraco e chute
forte. Encurralado no canto da parede, com o life pequeno, após derrubá-lo
recuei para segura distância e dei o especial do círculo de fogo, no qual o
personagem e gira por alguns segundos seu bastão incendiado. Minha ideia era
conseguir tirar algum life dele, caso se levantasse defendendo; ou apanhá-lo na
arapuca, pois se levantasse rolando, o rolamento tendia a acabar ainda dentro
do raio de ação do círculo de fogo, pela distância estratégica que eu tomara.
Mas ele, seja por nervosismo, erro simples ou mesmo desistência, levantou sem
defender ou rolar, recebendo todo o impacto do especial.
Antes
que o narrador do jogo terminasse de gritar o “k.o.”, apaguei, fosse por
exaustão física e psíquica, fosse por algum narcótico introduzido em minhas
veias.
Quando
acordei ainda era noite. Uma rua de chão, úmida de alguma chuva recente, me
servia de cama. Era a serventia de um local desolado, situado à beira mar,
próximo a uma espécie de atracadouro clandestino ou píer. Levantei-me com
grande esforço. Todo o meu corpo doía, mas a dor de cabeça, lancinante, era a
mais dura de suportar. Ao meu lado percebi duas malas pretas. Abri uma delas,
temeroso, mas esperando encontrar água, pois minha garganta estava como que
dormente de sequidão. Percebi então que naquelas valises estavam os prêmios –
dinheiro e videogames.
Coloquei
algum dinheiro no bolso, recobrei parte de minhas forças e segui por aquela
ruela arrastando as malas, pois possuíam rodinhas. Vários metros adiante
cheguei a uma espécie de pequeno bar, ou birosca, onde três bêbados bebericavam
cerveja ruim e destilados baratos. Mesmo bêbados, me olharam com espanto e
desconfiança, mas me informaram o que lhes perguntei: eu estava nas
proximidades da favela da Kelsons, no Rio de Janeiro. Me indicaram o caminho
até o asfalto, ou “a estrada”.
Me
vi num embate ético: decerto deveria ir até a polícia imediatamente; mas, e se
eu fosse considerado culpado ou cúmplice de toda aquela loucura? E o dinheiro,
aquele maldito mas sempre útil dinheiro, se lá aparecesse com ele, o mesmo
seria certamente confiscado.
Eu
estava fraco demais para tomar decisões. “Amanhã e água, amanhã e água”, minha
mente repetia, violentada. Avançando pela estrada, consegui que um táxi
parasse, e nele embarquei. Em casa, não sabendo o que fazer, me pus a escrever
este relato, com todos os detalhes possíveis, para não esquecer de nada, antes
de ser novamente engolido pela exaustão.
São cinco e quarenta e dois da manhã; minha mãe e meu padrasto devem estar no forrozão. Logo chegam, bêbados. Vou dormir, e queira Deus que nunca mais acorde. Ou me permita reencontrar aquele desgraçado, e despedaçá-lo num novo jogo.
Sammis
Reachers
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