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sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Janaína ganha o mundo - Um conto sobre o tráfico humano

 


Era estudante do quarto período de Direito na Faculdade Universo, no auspicioso bairro de Trindade, na fluminense São Gonçalo. Da faculdade ia para casa a pé: Herdara de uma tia solteirona um apartamento no condomínio Alcântara II, a uns dois quilômetros do campus. As mensalidades eram pagas, com aperto, por seu trabalho como vendedora numa loja da perfumaria O Boticário, num grande shopping gonçalense.

Alegre, vaidosa, decidida. Assim os amigos definiam Janaína, cuja frase de status no Whatsapp era quase afrontosa (ou de um empoderamento rude, alguém diria torpe): “Mulher bonita pode fazer o que quiser”.

Há muito Janaína tomara aquela máxima para si, para a vida. A ouvira ainda na adolescência. Indo com uma amiga para uma matinê no saudoso Clube Tamoio, em São Gonçalo, e querendo economizar os poucos dinheirinhos, já a bordo do busão perguntou ao cobrador, – Colega, a gente pode passar juntas? – Queriam passar juntas na roleta ou catraca, pagando uma única passagem.

– Claro, meu anjo. Mulher bonita pode fazer o que quiser.

 

*   *   *

 

Ela o conhecera por indicação de outra aluna da faculdade de Direito. Era um argentino de seus quarenta anos, esbelto, trajando sempre o rigor das últimas tendências; possuía uma farta cabeleira agrisalhada, que ele conservava presa num elegante rabo-de-cavalo.

Ela quase se apaixonou, e olha que nem era disso, pois de paixão costumava ser ela o objeto, e isso lhe bastava – e até pagava algumas contas. Mas o argentino deixou nas entrelinhas que aquela relação era apenas profissional. Ele já trabalhara na Costa Rica, México e Colômbia, e agora estava no Brasil. Era um tipo de caça-talentos, a serviço de uma grande marca da moda e perfumaria europeia. Fundada em 1913 em Milão, na Itália, por Mario Prada, a marca Prada era sinônimo incontornável de glamour – e grana, claro. A marca buscava ampliar sua presença global, notadamente no ramo de perfumes. O argentino tinha a função de encontrar e selecionar mulheres dentro do perfil delimitado pela marca, enviando-as então para a Itália, onde trabalhariam por nove meses numa das lojas da empresa, especializada em cosméticos, num regime de estágio/curso remunerado.

Uma baita mudança de vida, ares e rotina, que era compensada à farta pelo salário: Quatro mil dólares mensais, mais alojamento. E ainda aulas de inglês e italiano no pacote, que incluía oferta de emprego numa das futuras lojas da divisão de perfumaria da marca, no Brasil.

 

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Trancou a faculdade. Nas redes sociais celebrou sua conquista, postando fotos de seu passaporte, e até fotos da cidade de Milão, seu em breve destino, fotos que ‘roubartilhara’ da internet. As amigas ficaram em polvorosa, e os parabéns venenosos, transidos na inveja, choviam sobre Janaína, que os sorvia com prazer. “Haha! Elas que lutem!”

Com o dinheiro da rescisão de seu contrato de trabalho na Boticário, Janaína ajudou a mãe, dona Josefa, castigada nordestina do município de Nossa Senhora das Dores, em Sergipe, a ampliar sua casinha. Desde seus primeiros anos no Rio a moça convidava, instava, implorava até, à septuagenária e solitária mãe para vir morar com ela, mas dona Josefa sempre desconversava, dizia que estava bem na terrinha, que não se adaptaria.

 

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A gritaria fez alguns clientes saírem de seus quartos, enquanto os seguranças rapidamente se lançaram escadaria acima.

A menina, que instintivamente correra para as estreitas escadas, brecou e fez meia-volta, ao ver os dois brucutus que subiam por elas. A construção, bastante antiga, “tinha quase quinhentos anos”, segundo lhe dissera um dia uma das moças, e um problema com a mesma idade: Era pelas escadas a única saída.

No meio do pandemônio, um dos clientes fez menção de agarrá-la, mas recuou ao ver seu rosto, ensanguentado, e o instrumento em suas mãos, uma tesoura – igualmente ensanguentada.

Enquanto recuava, ela passou pela sucessão de portas, cada uma das quais lhe trazia à memória um trauma, uma perversidade.

Ao fim do corredor, estacou. Voltou-se, apenas para divisar que os brutamontes estavam agora na metade do grande corredor, um deles com o taser nas mãos – taser seu velho conhecido. Ela já desmaiara duas vezes ao toque daquele instrumento de choque.

A moça observou a grande janela que dava para a fachada frontal do edifício, mantida propositalmente encardida. Conseguiu divisar, entre o baço da fuligem, a cidade lá fora, cujas luzes noturnas eram apoiadas pelo brilho lunar, naquele agosto quente, em pleno verão europeu. Era Amalfi, pequena e redundantemente bela cidade costeira italiana, propriedade da máfia "Ndrangheta. Assim como ela.

A jovem sabia três andares até o chão, carros e alguns arbustos lá embaixo. Como uma cotia que defronta uma onça-pintada, ela podia ouvir, literalmente, o tic-tac do inferno em aceleração, murmurando em seus ouvidos. Precisava tomar sua decisão: Fugir ou lutar. Apertou com força a tesoura nas mãos – a mesma com que perfurara há pouco o peito do cliente, aquele que todas as sextas-feiras vinha para a casa, vinha para torturá-la, penetrá-la com objetos, humilhá-la.

Hoje ele queria usar um crucifixo. Foi o limite para aquela corroída alma sertaneja. Ela nunca tivera lá tempo para aquele Deus – estava ocupada, vivendo sua vida, boletos, correria, curtindo – que não era de ferro. Mas sabia que aquilo era demais, demais para ela e para o próprio novo-velho mundo que ela descobrira ao descer daquele avião na cidade errada, mundo onde o mal se despia de suas milhares de máscaras e firulas e se apresentava nu, impudico, soberano-sem-intermediários sobre tudo o que é seu. E, ela compreendera com a própria carne, em alguns lugares ele era senhor de praticamente tudo.

Tomou distância da janela, apenas para retornar em sua direção. Lançou-se, explodindo seu desespero de encontro às vidraças, escapando das mãos dos sequazes da "Ndrangheta, que já estavam como que sobre ela. Imaginou cair em pé, quebraria as pernas?, pediria ajuda.

Bateu com as costas sobre um Alfa-Romeo Giulia – luxuosa propriedade de um dos clientes, que jamais teria coragem de cobrar o prejuízo à máfia calabresa, tida como a mais silente, sanguinária e poderosa do mundo.

 Morreu na hora.

 

*   *   *

 

1,76m, 62kg, 64cm de cintura, 96 de quadril, 102 de busto. Jovem deusa de jambo e ocitocina do Brasil miscigenado de amores e estupros, filha de Josefa Fortunata Ramalho, de pai desconhecido – assim como seu destino, sem funeral, de cadáver dissolvido num tonel de ácido pela máfia.

Gonçalense adotiva, guerreira, sonhadora, deslumbrada e cooptada pela máfia do tráfico humano, nem primeira nem última, lágrimas num casebre em Nossa Senhora das Dores, número numa estatística. 


Sammis Reachers



Este conto faz parte do livro Fabulário Índigo. Disponível em formato impresso (aqui) e e-book (pela Amazon, aqui).


 

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