Quanto mais se envelhece, tanto mais entendimento se tem em relação à vida e mais gosto para o que é agradável e capacidade para apreciar; resumindo, quanto mais competente um indivíduo se torna, menos satisfeito fica. Satisfeito, completamente, absolutamente e de todas as maneiras, isso nunca se fica, e estar mais ou menos satisfeito não vale a pena; assim sendo, é melhor estar totalmente insatisfeito. Qualquer pessoa que tenha examinado o assunto aprofundadamente dar-me-á decerto razão quanto ao fato de, ao longo de toda a vida, nunca ser concedido a um indivíduo, nem por uma meia hora, estar absolutamente satisfeito de todas as maneiras que possam pensar-se. Que para tanto é nomeadamente necessário algo mais do que ter alimentação e vestuário, não precisarei decerto de dizer. Uma vez estive lá próximo.
Uma manhã levantei-me e senti-me desusadamente bem; o meu sentimento de bem-estar aumentou ainda, sem analogia com qualquer outra experiência, até ao meio-dia; precisamente à uma da tarde encontrava-me no ponto mais alto e pressentia o vertiginoso máximo que não se encontra marcado em nenhuma escala do bem-estar, nem sequer num termômetro poético. O meu corpo perdera o seu peso terrestre; era como se eu não tivesse corpo, precisamente porque cada função se deleitava na sua total satisfação, cada nervo regozijava-se consigo próprio e com o todo, ao mesmo tempo que cada pulsação, enquanto agitação do organismo, se limitava a evocar e anunciar o prazer do instante.
O meu andar era planante, não como o voo da ave, que rasga os ares e
abandona a terra, mas antes como o ondear do vento sobre a seara, como o
embalar nostálgico do mar, como o transcorrer sonhador das nuvens. O meu ser
era transparência como a profundidade dos baixios do mar, como o silêncio da
noite, satisfeito de si, como a quietude monologal do meio do dia. Cada
disposição repousava na minha alma com ressonância melódica. Cada pensamento
ofertava-se, e cada pensamento ofertava-se com o júbilo da bem-aventurança: a
mais louca invenção não menos do que a ideia mais rica. Cada impressão era
pressentida antes de chegar, e por isso despertava dentro de mim mesmo. Toda a
existência estava como que apaixonada por mim e tudo estremecia numa relação
prenhe de consequências com o meu ser, tudo em mim era augúrio e tudo estava
enigmaticamente transfigurado na minha microscópica bem-aventurança que tudo
transformava em si, mesmo as coisas desagradáveis, o reparo mais enfadonho, a
visão de algo repugnante, o conflito mais vexante.
Como ficou dito, precisamente à uma hora da tarde estava eu
no ponto mais alto, em que pressentia o cume dos cumes; nessa altura algo
começou subitamente a irritar-me um dos olhos; se era uma pestana, uma
partícula, um grão de poeira, não sei, mas o que sei é que nesse mesmo instante
quase me despenhei no abismo do desespero, coisa que compreenderá qualquer pessoa
que tenha estado tão alto como eu e que, estando nesse ponto, se tenha ocupado
simultaneamente com essa questão de princípio que é a de saber em que medida se
consegue alcançar de todo a absoluta satisfação.
Desde essa altura abandonei qualquer esperança de alguma vez
me achar satisfeito em absoluto e de todas as maneiras, abandonei a esperança,
que uma vez alimentara, não decerto de estar absolutamente satisfeito em todos
os momentos, mas ao menos em certos instantes, ainda que essas unidades de
instante não sejam mais do que aquilo que, como diz Shakespeare, “uma
aritmética de cervejeiro seria suficiente para somar”.
Trecho extraído aleatoriamente de A Repetição, de Soren
Kierkagaard.
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