Nos
ribombares da pandemônica década de 60, meu pai, Mário Pedro da Silva, chegou
ao estado do Rio, vindo da doce e estacionária vida em Arapongas, no interior
do Paraná. Vinha em busca de glória e fama: sonhava ser ator. Ou cantar no
rádio. Ou uma ponte que o levasse à Hollywood. Ou você pensou que a parte
carnavalesca de meu nome, “Sammis Reachers Cristence” Silva, veio de uma
inspiração superior? Talvez descendente de abnegados missionários ingleses, ou
colonos alemães avermelhados pelo sol e pelo solo paranaense? Que tal de Herbert
Richers, o falido e antes onipresente empresário da dublagem televisa (“Versão
brasileira: Herbert Richers”, lembra?). Veio dos nomes nos créditos finais dos
filmes que ele, meu velho jovem pai, amava, na pacatitude da já citada
Arapongas, onde o cinema era tudo o que havia, a bacia das almas.
Bem,
após alguns meses desavisadamente fustigantes na efervescência da capital, a
inadequação de nosso herói mambembe encontrou refrigério inesperado quando ele foi
convidado para ver “aquela cidade ali, do outro lado da baía”. Atravessando as
águas turvazuis da Guanabara, o jovem paranaense teve uma iluminação ao
conhecer a cidade onde eu vim a nascer (epa, spoiler!). A calmaria da Niterói
ainda em sua meia idade lhe lembrava de alguma forma o Paraná pacatizado,
pacativante, e a paixão assomou aos olhos do aspirante a James Dean.
Em
pouco tempo Mario estava de mala e calça boca de sino alugando quarto de pensão
em Icaraí, naquela época o bairro (que já era nobre) que reunia o melhor
consórcio de aprazibilidade e centralidade.
Estabelecido,
meu pai logo conseguiu emprego na cidade
sorriso e pôs-se a fazer amigos. Na própria pensão em que se instalara, havia os
mais diferentes tipos.
A
tal pensão tinha sua legislação, como é (epa, ao menos era) de praxe em tais
repúblicas. Nada de mulheres; nada de cozinhar nos quartos; divisão de quartos?
No máximo entre dois homens.
A
dona da pensão era o coração pulsante do lugar, e ela mesma uma figura da mais
relevante singularidade. Bogotana, filha da Bogotá de nossa vizinha Colômbia,
ninguém nunca soube o que ela viera fazer naqueles idos por aqui. A suspeita
que liderava as pesquisas era que a agora velha Consuelo, jovem ainda havia se
apaixonado por algum cafajeste viajor, que a trouxera para as paragens braileñas,
e aqui a abandonara à própria e mala sorte.
Era
ela, a querida de todos na pensão, que proporcionava o momento mágico da vida
daqueles senhores, homens e rapazes que ali habitavam, durante o jantar (a
pensão servia apenas café da manhã, simplório, e jantar. O almoço cada um tinha
que filar ou comprar em outras paragens). A comida, sempre exuberantemente saborosa,
mesmo nos dias de maior frugalidade, entorpecia os ânimos e estômagos de todos
aqueles que, felizardos, a provassem. Uma cozinha primorosa, cercada como
convém de segredos (era terminantemente proibido que enxeridos penetrassem na
casa de dona Consuelo durante a elaboração dos pratos) e com doces toques de
exotismo era ali praticada; uma cozinha que merecia até estar aberta ao
público, e mais, a um público mais seleto do que àquela coletânea de solteiros
que se refastelava nas panelas. Solteiros que, cientes da bênção que era sorver
aquela cozinha encantadora, segredavam entre si o privilégio que era morar
naquele lugar, se por mais nada, ao menos pela comida fulminante. Contrariados,
evitavam estender-se em elogios, embora os mesmos fossem algo inevitáveis:
temiam que a boa senhora abrisse um restaurante, caso em que certamente faria
imediata fortuna, e de uma única e mesma facada lhes fosse surrupiada a estalagem
e a boa comida...
Após
o repasto, a alegria descia sobre os agregados; as conversas se expandiam.
Tímidos passavam a palrar como canários; os já faladores eram então insuflados
a animadores de auditório. As cantorias tomavam o ar de torneios, de “Festivais
da Canção” onde duelavam-se sorridentes convivas. Havia algo de mágico naquele
ambiente, e era sempre após o jantar que aquela magia socializadora ou destimidizadora
parecia explodir.
Certa
feita o silencioso Abelardo, aprendiz de oculista, e que normalmente mal
despachava um “bom dia, boa noite” aos companheiros de pensão, pôs-se a
rodopiar em dança, solitário, olhos cerrados, como que arrebatado; seu bailar,
aplaudido pelos demais, estendeu-se portão afora da república – e lá foi o
Abelardo, antes tímido que só ele, dançarolando pela calçada, ao som de algum
acompanhamento musical que só ele ouvia (pois não havia música a tocar), para
espanto dos poucos transeuntes daquele trecho.
E
o Fernando, policial turrão e engomado, príncipe da empáfia e da arrogância
militaresca, que, sempre que tocado pelos benfazejos vapores do jantar, punha-se
a pedir perdão aos companheiros por seu comportamento usualmente arrogante?
Certa feita receitou, de improviso, um belo poemeto em honra da amizade,
declamação que o levou embaraçosamente aos soluços lacrimais.
Mas
o efeito mais bizarro daquela felicidade pós-banquetal se dava sobre o Rui, pernambucano
cabo da Marinha de Guerra, varonil mulherista e mui cioso de sua elevada
posição (cabo, como disse) na hierarquia militar. O brincalhão e pretensamente galanteador
marujo, negro de média estatura, peitoral proeminente, belos olhos de um
castanho claro que ele alegava serem os terrores do mulheril, quando de barriga
cheia e engolfado pelo clima descontraído que se sucedia àqueles jantares,
ganhava um brilho diferente no olhar. Primeiro era seu riso, que se alongava;
em seguida suas gesticulações passavam a ganhar mais vida, mais curvas; a
marcialidade de seus movimentos cambiava para uma leveza quase... quase
feminina. E assim, sorrindo largamente até as gargalhadas, traquejando com
inesperada malemolência, o Rui, agora levantado de sua cadeira, passava então a
apertar e massagear os ombros dos amigos, alisando os cabelos de um aqui, ajeitando
a gola de outro ali... O que no princípio inevitavelmente descambou em algumas
confusões, mas rapidamente aquela “transformação” foi absorvida pela geleia
geral daquele festim diário de pós-expedientes.
O
desenlace de nossa historieta teve seu início com o aperto e a correspondente
esperteza de meu pai: conhecedor da proibição de cozinhar nos quartos, o jovem
paranaense, talvez contaminado pela mítica malandragem carioca, resolveu
transgredir a lei em nome da economia: conseguindo um pequeno fogareiro de um
bocal, movido à prosaico querosene, passou a cozinhar pequenas porções de
macarrão ou outras basicalidades dentro do quarto; para isso, todos os dias na
hora do almoço voltava para a pensão a título de descansar justamente o
“almoço” que alegara já ter consumido no centro de Niterói...
Em
pouco tempo nosso herói, tão inábil na cozinha quanto um cego, passou a
ressentir-se de ter que comer seu macarrão ou arroz ou o que fosse sempre maculado
pela mais insossa sem-saboria. Já não sabia cozinhar; “mal” acostumado que ali
fora a uma cozinha dos deuses, amargava cada colherada de sua própria comida
como um condenado.
Um
dia o estudante autodidata de inglês, que ainda sonhava em conhecer Hollywood,
teve um insight: e se ele conseguisse dar uma expiada na dona Consuelo
enquanto ela cozinhava? A velha era irredutível nesse ponto, mas ele poderia
bolar algum tipo de burla para conferir como aquela maga temperava suas
comidas. Não deveria ser tão difícil. Nosso mais novo malandro já não suportava
a tortura de almoçar sola de sapato e jantar manjares e ambrosias...
Um
belo dia meu pai saiu um pouco mais cedo do trabalho (nesta época já trabalhava
como contínuo na Facit, no centro de Niterói) e dirigiu-se para a pensão. Ali, esgueirou-se
pela parte detrás daquele conjunto de quartos, já com um tamborete nas mãos,
para dar altura à pequena janela que fundeava a cozinha da velha, e lá se
espichou ele para observar qual o segredo dos temperos da dona Consuelo.
Observou por um tempo considerável enquanto a velha picava carne para um
ensopadinho, cozinhava uma formidável panela de arroz e remexia um feijão que
estranhamente não levava alho, mas ficava sempre delicioso. A atenção do
malandrete estava concentrada no momento das temperanças, pois ali ele esperava
descobrir ao menos algo que pudesse replicar, ainda que porcamente, a fim de
mitigar o gosto já intragável de sua comida.
Pendurado
e atento em seu tamborete, o jovem viu a idosa estrangeira sacar de dentro de
um armário uma chusma de matos diversos. A velhinha pôs-se a picar bem finas
algumas folhagens; meu pai estava atento: pôde reconhecer cebolinha, aipo e
talvez cardamomo. Mas então a matrona bogotense ou bogotana apanhou um grande
pote plástico e dele sacou uma outra erva. A velha espremeu algumas das estranhas
folhas nos dedos, e pareceu sorver seu aroma por alguns instantes; depois
pôs-se a arrancar pedaços daquelas folhas estreladas e jogar dentro de todas as
panelas que tremelicavam no fogão.
O
ex-matuto de roça e aprendiz de haute coisine já havia visto aquela erva
fina, mas não fora nas pequenas roças de fundo de quintal naquela terra roxa e
fértil do Paraná, nem nas vendas e armazéns, quando sua madrasta lhe mandava ir
até lá comprar este ou aquele item; quem lhe mostrara aquele tipo de tempero
fora Fernando, o policial ferrabrás, que certa feita exibia numa revista de sua
corporação imagens daquela exótica planta, tão em moda naqueles idos da década
de 60. O desconcerto da informação, sub-reptícia e algo dura de equalizar,
derrubou meu jovem pai estatelado no chão.
Enquanto
caia de sua banqueta, num daqueles fenômenos de slow motion que gostam
de acontecer nos momentos dramáticos de nossas vidas, o jovem cinéfilo
paranaense revira em flashback toda aquela espalhafatosa alegria
pós-pasto; a música, as piadas, o gracejos e traquejos e a felicidade quase
mágicas que assomavam a todos os republicanos da pensão de dona Consuelo. O
motivo estava agora claro, pensava o magricela enquanto pranchava suas costelas
contra alguns pedregulhos do chão.
Sabe-se
lá por que cargas d’água (e a que custo, meu Deus, a que custo!), dona Consuelo
temperava todos os seus pratos com frescas folhas de maconha...
* * *
* * *
Deglutidos
os embaraços, o jovem migrante paranaense não pensou uma segunda vez. Reuniu
seus vinténs e avançou ainda mais mato adentro: Comprou uma caxanguinha em
nossa São Gonçalo, longe dos exóticos temperos colombianos. Bem, nem tão longe
assim, mas essa história todos conhecemos...
Sammis Reachers
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