Páginas

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

O Canário Preso, poema de Zenas de Resende Vieira


O CANÁRIO PRESO

Às aves Deus dá o céu, a imensidade,
As verdes florestas, os campos sem fim,
 Os espaços, onde voam à vontade,
As relvas virentes do imenso jardim.
Mas, vil homem mau, egoísta, perverso,
Vendo a liberdade do pobre cantor,
Reduz à gaiola o seu grande universo
E dele se toma veraz opressor.

Assim é, canário, que preso caíste
Na infame gaiola, em que hás de viver!
Ficou solitária a parceira e mui triste,
Cantando outro canto de tédio e gemer.
Não pode esquecer-te, mas canta baixinho,
Lembrando os bons tempos que livres nos ares,
Ao sopro das brisas, contentes no ninho,
Vivíeis juntinhos, sem dor, nem pesares.

Agora cativo, qual vil degradado,
Sem mais esperança de libertação,
Tu arcas sofrido, co'a dor do teu fado,
Sem mais distrações pelo vasto sertão.
Teu vil prendedor, sim, ficou mui contente,
Com o teu murmúrio, ao longo das horas,
Cantando e chorando o teu hino dolente,
As mágoas do peito no canto que choras!

 Zenas de Resende Vieira

Do livro Grão de areia nas praias do mar (Edições Cristãs Editora).

KADDISH POR MEU FILHO ABSALÃO


«Quem me dera que eu morrera / Por ti, Absalão.»
Rei David

Na alta abóbada de uma árvore
o teu cabelo chamou a morte
A tua efémera beleza
emaranhada no lugar dos ramos
como frágil presa
Um corpo sonâmbulo colhido como um fruto
como um pássaro nocturno
onde a morte depositou os dardos
Meu filho, Absalão, meu filho
ai o teu coração sozinho, permeável
ao vento sob a árvore.

© João Tomaz Parreira

domingo, 5 de novembro de 2017

Sahhir, o Perscrutador, encontra-se com Deus


Sahhir, o Perscrutador, encontra-se com Deus

      Mercadejando metais e breves víveres nas plagas da Mesopotâmia, umbigo-que-não-cicatriza do mundo, gastava-se o árabe criado por judeus, órfão agregado a rebeldes, Sahhir.
      Ironicamente referido como O Devorador de Papiros ou O Perscrutador pelo rude populacho dos mercados a quem servia, em certa e ditosa feita, enveredando sozinho entre o deserto de Syn e a gloriosa Madinat as-Salam, dita Bagdá (Bag, "deus", e dād, "dado"; "dado-por-Deus", no persa médio, sexta das línguas de Sahhir), encontrou-se o curioso mercante com o Anjo do Senhor.
      Prostrando-se em terra, clamou por seu pecados.
      - Que desejas, pequeno barro, semelhança do Altíssimo?
      Sahhir, locupletado de luz e horror, não confabulou curas ou joias, palácios ou patentes:
      - Sou pó e do pó lhe adoro, Deus de meus benfeitores, e sei que morrerei por lhe contemplar. Sabes bem, ó Onisciente, que desejo, com humildade, saber e apenas saber. Conte-me, rogo, como e para quê fizeste o Universo.
      - Tais questões fogem à capacidade que lhe dei, ó enxertado, como o voar está distante de Beemoth-a-baleia. No entanto, naquilo para o que a engendrei, vês como é deveras insuperável e poderosa?

      - Sei bem que não poderei entender, Senhor; a mim me basta o ser maravilhado. 

Sammis Reachers