Jaime Pinsky
Se o Ocidente tivesse levado Jack Goody a sério,
teria entendido melhor o desenvolvimento supostamente inexplicável da China,
assim como o surgimento dos tigres asiáticos e do próprio milagre japonês. O mundo
não se resume à Europa e aos países de colonização europeia. Óbvio? Agora, sim.
É fácil ser profeta do passado. Mas, se as pessoas ouvissem um pouco mais os
historiadores e cientistas sociais e levassem um pouco menos a sério os
analistas de conjuntura, sejam eles quem forem, a história não nos pegaria tão
desprevenidos. Mas vamos a Goody.
Considerado um dos maiores antropólogos da
civilização vivos, reconhecido no mundo inteiro, ainda é pouco conhecido no
Brasil, embora seja tido como uma espécie de Hobsbawn da Antropologia, tanto
pela profundidade e coragem de suas análises quanto pela iconoclastia de suas
posições, ou, ainda, pelo fato de se assumir como intelectual público.
Pesquisador cuidadoso, dono de erudição
extraordinária, acumulada em quase 90 anos de vida, Goody tem uma obra variada
e muito respeitada. Transita por temas tão distintos como a família, o
feminismo, a cozinha, a cultura das flores, o contraste entre cultura ocidental
e oriental, até o impacto da escrita em diferentes sociedades. Seu livro O roubo da História é uma espécie de
síntese e revisão de suas pesquisas e pensamento. Em suas páginas, ele faz uma
crítica contundente a tudo aquilo que considera viés ocidentalizado e
etnocêntrico, difundido pela historiografia ocidental e o consequente roubo,
perpetrado pelo Ocidente, das conquistas das outras culturas. Goody não discute
apenas invenções como pólvora, bússola, papel ou macarrão, mas também valores
como democracia, capitalismo, individualismo e até amor. Para ele, nós,
ocidentais, nos apropriamos de tudo, sem nenhum pudor. Sem dar o devido
crédito.
Não reconhecer as qualidades do outro é o melhor
caminho para não se dar conta do potencial dele. Até no esporte apregoa-se que
não se deve subestimar o adversário. E Goody percebe certo desprezo pelo
Oriente, que já custou e pode e ainda custar mais caro ao mundo ocidental.
Assim, ele acusa teóricos fundamentais, como Marx, Weber, Norbert Elias e
questiona enfaticamente Braudel, Finley e Perry Anderson por esconderem conquistas
do Oriente e mesmo de se apropriarem delas em seus escritos. Arrasa os
medievalistas que querem transformar um período violento, repressivo, dogmático
e sem muita criatividade (a Idade Média) em algo simpático e palatável, só por
ser, supostamente, a época da criação da Europa (e, portanto, do conceito de
Ocidente). E mostra que, ao menos, em termos de capitalismo mercantil, o
Oriente tem sido, ao longo da história, bem mais desenvolvido do que o Ocidente.
O que contraria interpretações que desconsideram o Oriente e se debruçam apenas
sobre as transformações nas relações de produção do mundo ocidental para
explicar sociedade, política e cultura.
De fato, esquemas economicistas, alguns deles
apropriados e vulgarizados por um marxismo elementar ainda praticado por
supostos analistas politizados, mostram um mundo europeu criando o mercantilismo
e as embarcações (inventaram até uma inexistente Escola de Sagres), a bússola e
o papel. Alguns professores ainda ensinam uma oposição entre a democracia
(criação grega, portanto ocidental) e o totalitarismo (coisa natural entre
orientais como chineses e russos). Contra esse tipo de História é que Goody se
insurge.
Claro que, entusiasmado pelas próprias
descobertas, formula algumas conclusões bastante discutíveis. Mas atenção: esse
livro não é um simples ensaio, um trabalho opinativo. Considerado um dos mais
importantes cientistas sociais do mundo, Goody tem uma obra sólida,
consistente, plena de informações e de comparações, reconhecida por colegas com
quem estudou e trabalhou. No livro, recorre a pesquisas feitas na Ásia e na
África (muitas realizadas por ele mesmo), para dar peso às suas teses. Assim,
mesmo que se venha a discordar de alguns de seus pontos de vista ou conclusões,
temos muito a aprender com ele, principalmente como entender o mundo
globalizado — e não sob uma ótica puramente econômica. Mais que um grande
intelectual, Jack Goody é um verdadeiro cidadão planetário. E, no livro,
apaixonado e apaixonante, abre uma janela para aqueles que querem descortinar o
mundo.
No livro Por que gostamos de História (São Paulo: Contexto, 2013).
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