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sexta-feira, 30 de junho de 2017
Miguel Torga: À Beleza
À Beleza
Não tens corpo, nem pátria, nem família,
Não te curvas ao jugo dos tiranos.
Não tens preço na terra dos humanos,
Nem o tempo te rói.
És a essência dos anos,
O que vem e o que foi.
És a carne dos deuses,
O sorriso das pedras,
E a candura do instinto.
És aquele alimento
De quem, farto de pão, anda faminto.
És a graça da vida em toda a parte,
Ou em arte,
Ou em simples verdade.
És o cravo vermelho,
Ou a moça no espelho,
Que depois de te ver se persuade.
És um verso perfeito
Que traz consigo a força do que diz.
És o jeito
Que tem, antes de mestre, o aprendiz.
És a beleza, enfim. És o teu nome.
Um milagre, uma luz, uma harmonia,
Uma linha sem traço...
Mas sem corpo, sem pátria e sem família,
Tudo repousa em paz no teu regaço.
Miguel Torga, in 'Odes'
Via http://abrigodossabios-paulo.blogspot.com.br
quarta-feira, 28 de junho de 2017
CASA DE ORAÇÃO
“Vês estas
grandiosas construções? Não deve ser aqui deixada
Pedra sobre
pedra que não seja desmoronada”
Marcos, 1, 2
Quando fechares um dia as tuas portas
não será porque a noite
desceu o véu translúcido sobre as coisas
Ou porque te falte o amor
para acolher os
homens e mulheres perdidos
será porque a bagagem estava pronta e Ele veio.
Há sinais que o mundo ignora, o sangue
nas estrelas, a qualquer hora os mares
podem erguer-se do seu profundo leito
e os sismos
que abrem fendas nas nossas arquitraves
Quando fechares as tuas portas
será porque à hora mais inesperada
os relógios deixarão de ter valia
virá Aquele por
quem anseia a nossa alma
A qualquer hora da noite nos levantaremos
a qualquer hora do dia, subiremos de repente
pelo algodão das nuvens
e a casa de oração fechará as suas portas
E quem entrar, porque perdeu a noção da hora
encontrará cadeiras e talvez algumas mãos vazias
quando vier
Aquele que se espera
haverá um silêncio assombrado que passa
nos olhares dos homens
baterão com insistência à tua porta
Mas será o silêncio de Deus que encherá
para sempre os cantos mais recônditos
mesmo os mais iluminados desta casa.
16/6/2017
© João Tomaz Parreira
sábado, 24 de junho de 2017
a Mulher
Onde estão, Mulher, aqueles teus acusadores?
que vieram escondidos atrás das sombras
como falsificadores de Moisés, onde estão
aqueles que escutaram através das paredes,
que não vêem
senão a carne dos dramas alheios, os que trazem
o incenso do sexo na cabeça
e denunciam o que pode ser um amor
errado, mas ainda assim amor.
onde estão, Mulher, aqueles acusadores
que se vestiram com vestes empertigadas
para o solene cortejo, para te levarem ao cúmulo
das pedras, onde estão agora
aqueles que usaram na voz a volúpia rasteira,
todos aqueles que medem tudo com o ranger
dos dentes da sua santidade?
como falsificadores de Moisés, onde estão
aqueles que escutaram através das paredes,
que não vêem
senão a carne dos dramas alheios, os que trazem
o incenso do sexo na cabeça
e denunciam o que pode ser um amor
errado, mas ainda assim amor.
onde estão, Mulher, aqueles acusadores
que se vestiram com vestes empertigadas
para o solene cortejo, para te levarem ao cúmulo
das pedras, onde estão agora
aqueles que usaram na voz a volúpia rasteira,
todos aqueles que medem tudo com o ranger
dos dentes da sua santidade?
22-06-2015
© João Tomaz Parreira
© João Tomaz Parreira
terça-feira, 20 de junho de 2017
Hermann Hesse: Amar
Amar
Quanto mais envelhecia, quanto mais insípidas me pareciam
as pequenas satisfações que a vida me dava,
tanto mais claramente compreendia onde eu deveria procurar a fonte
das alegrias da vida.
Aprendi que ser amado não é nada, enquanto amar é tudo.
O dinheiro não era nada, o poder não era nada.
Vi tanta gente que tinha dinheiro e poder, e mesmo assim era infeliz.
A beleza não era nada.
Vi homens e mulheres belos, infelizes, apesar da sua beleza.
Também a saúde não contava tanto assim.
Cada um tem a saúde que sente.
Havia doentes cheios de vontade de viver
e havia sadios que definhavam angustiados pelo medo de sofrer.
A felicidade é amor, só isto.
Feliz é quem sabe amar.
Feliz é quem pode amar muito.
Mas amar e desejar não é a mesma coisa.
O amor é o desejo que atingiu a sabedoria.
O amor não quer possuir.
O amor quer somente amar.
Hermann Hesse
sábado, 10 de junho de 2017
Celeste Cão de Caça, um poema de Francis Thompson
CELESTE CÃO DE CAÇA
Dele fugi, noites e dias adentro;
Dele fugi, pelos arcos dos anos;
Dele fugi, pelos caminhos dos labirintos
De minha própria mente; e no meio de lágrimas
Dele me ocultei, e sob riso incessante.
Por sobre esperanças panorâmicas corri;
E lancei-me, precipitado,
Para baixo de titânicas trevas de temores abissais,
Para longe daqueles fortes Pés que seguiam,
Seguiam após mim.
Mas com desapressada perseguição,
E com inabalável ritmo,
Deliberada velocidade, majestosa urgência,
Eles marcavam os passos - e uma Voz insistia
Mais urgente que os Pés -"Tudo no mundo te atraiçoa quando tu me trais!...
Tudo foge de ti quando foges de Mim...
Ah, pobre cego e insensato!
Aquela treva que parecia envolver a tua vida
Nada mais era que a sombra de minhas mãos,
Estendidas para abraçar-te!
Dele fugi, pelos arcos dos anos;
Dele fugi, pelos caminhos dos labirintos
De minha própria mente; e no meio de lágrimas
Dele me ocultei, e sob riso incessante.
Por sobre esperanças panorâmicas corri;
E lancei-me, precipitado,
Para baixo de titânicas trevas de temores abissais,
Para longe daqueles fortes Pés que seguiam,
Seguiam após mim.
Mas com desapressada perseguição,
E com inabalável ritmo,
Deliberada velocidade, majestosa urgência,
Eles marcavam os passos - e uma Voz insistia
Mais urgente que os Pés -"Tudo no mundo te atraiçoa quando tu me trais!...
Tudo foge de ti quando foges de Mim...
Ah, pobre cego e insensato!
Aquela treva que parecia envolver a tua vida
Nada mais era que a sombra de minhas mãos,
Estendidas para abraçar-te!
quinta-feira, 8 de junho de 2017
TOQUEI NO PECADO E NÃO ERA A BELEZA
“Não desejo o caminho
do mundo
Sua paixão não me
atrai”
Han-Shan
Toquei no pecado e não era a beleza
Que eu sonhara, não havia os encantos
Da liberdade, ao redor da qual me sentei
Os meus lábios lutavam ainda
Queriam vencer uma língua impura
A minha cabeça foi um abismo
Até que as palavras de Deus
Lhe fizeram a luz, a luz deu passos
Seguros para os meus olhos, essa luz
Estendeu todo o amor do invisível
Para os cristais dos meus olhos ofuscados.
06/06/2017
© João Tomaz Parreira
domingo, 4 de junho de 2017
Fundação, um poema do amor
Fundação
Eu
fugia, sátiro por corsários
Amotinados
Mutilado
A
entrelaçadora, a Escuridão
Me
cirandava esfaqueava e enfim deitava
Às
paredes do labirinto
Que me nascia:
O
frio me desnudava
Vazio
após vazio e vazio
Eclipsava
no infinito, falsa
Crisálida
que leva de processo
A
processo, sem final em seu cio
Esperei
pelo levita,
O
escriba e o sacerdote
(e
Lutero não trans
tornou
a Terra num orbe de sacerdotes?)
Por
fim, o samaritano:
Passou
ao largo, ocupado o mui coitado
Em
fazer guerra ao judeu (e quem nunca?)
Que
os tempos primam pelo mal
E
ela apareceu, descendo com a noite
mínima
ninfa solitária
Sobre
cada uma
Minha
Cicatriz
Ela
deitou uma flor, freira das heras
Pródiga
em unguentos e emplastros
Karma
& cura
Para
minha colectânea de feras
E
unimunimo-nos de nós:
A
flora e a fauna
Dum planeta erradio,
Pais
fundadores de nossa imprópria
Raça
de seres milifelizes.
Sammis Reachers