O Segundo Éden
“O SENHOR, porém, disse-lhe: Portanto, qualquer que matar a
Caim sete vezes será castigado. E pôs o SENHOR um sinal em Caim, para que não o
ferisse qualquer que o achasse.” Gn 4.15
O povo arisia possuía
36 palavras para ‘Paz’. Trinta e seis peças de rica sinonímia, e não eram essas
aproximações chulas como em português poderíamos apor, por exemplo, ‘paz’ e
‘serenidade’. Eram como gradações, matizes, como especificações sutis do mesmo
conceito poderoso, cores de um caudaloso arco-íris.
A estranha existência
de tantas palavras para a rara paz decorre do fato de que, de todos os povos da
terra, mesmo entre os povos primordiais, os arisianos foram os que herdaram e
lograram guardar com maior fidelidade e por mais tempo o idioma raaisiaar, o
primeiro idioma humano, falado pelo pai Adão.
Eram também, de toda a
Dispersão anterior à torre de Babel, os que ficaram morando mais próximos do
vácuo que outrora fora o Éden.
Foram varridos da
existência por Caim, pai do caos, durante as campanhas de cainização promovidas
pelo primogênito do pai Adão. Campanhas essas onde ele exterminava todos os
homens adultos e jovens das tribos e povoados que encontrava, bem como todas as
crianças de ambos os sexos, e por fim copulava com todas as fêmeas em idade
fértil disponíveis, deixando-as à própria sorte, muitas delas grávidas devido
ao estupro. Pois o objetivo do ceifeiro do caos era criar uma raça imperial cainiana,
exterminando a descendência de todos os seus demais irmãos. E deitar assim mais
uma ofensa a Deus. Caim encontrara um formidável aliado, o primeiro Caim, ser
espiritual que prometeu-lhe uma noite, no deserto de Azaar, compartilhar com
ele o domínio do mundo, e disse-lhe que sua descendência alcançaria vastidão
como a das estrelas do céu.
O tempo foi propício a
Caim; a marca em seu rosto livrava-o de seus inimigos, tal o horror que
provocava. Ele ainda estava vivo para combater diretamente os bisnetos de seus
irmãos mais jovens, atravessando gerações com seu ódio.
Apenas seis arisianos
haviam sobrevivido ao ataque dos chacais de Caim. Naquela noite do massacre,
fugiram para Eridu e depois para Babilônia, terminando por fixarem-se em Shir,
povoamento que depois deu origem a Larsa. Levavam consigo a sinistra invenção
arisiana: o primeiro alfabeto, grafado no primeiro pergaminho.
De Larsa rumaram para
as montanhas de Elam, onde, por décadas, planejaram uma forma de refrear ou
deter a insânia cainiana. Como os demais sob o céu, temiam profundamente a
maldição que Caim levava por coroa, e ninguém, ainda que lhe fosse possível,
ousava assassinar o Assassino.
Levaram cem anos para
conceber seu plano.
Cinco sobreviventes
espalharam-se pelo Orbe. Três tinham a missão de trazer sementes de toda boa
planta que encontrassem, o que fizeram com fartura. Os outros dois foram
encarregados de empresa mais sutil: deveriam ir em busca de plantas que
gerassem frutos venenosos.
Plantaram então, no
vácuo do que fora Éden, um jardim. Muito menor que o original, e inferior em
tudo ao primeiro; mas, no pequeno declive onde realizaram seu verdejante
engodo, foi a maior beleza alcançada até ali por mãos de barro. Os homens
conheciam a agricultura de subsistência, mas era a primeira vez depois do Éden
que conheciam um jardim: uma ambientação não apenas utilitária, mas
fundamentalmente estética, naquele exercício primevo de paisagismo.
Aguardaram outras
dezenas de anos; os homens viviam então satisfatoriamente, o tédio que mata
tantos homens hoje era então apenas uma sombra, uma intuição.
No propício tempo
fizeram correr entre andarilhos e mercadores a lenda de que, a leste de Tigor,
restara um verdejante resquício do Éden. E apenas para alguns seletos, deram a
conhecer outro fato (lenda dentro da lenda): a Árvore da Vida subsistira em tal
restolho do Jardim, e era agora guardada apenas por mãos de barro umidificado,
mãos de homens.
Luas depois um
emissário de Caim e seu pequeno séquito foram dar pelas bordas daquele grande
horto. Ao partir, o emissário levava uma auspiciosa confirmação, e um secreto
convite para o segundo dos homens e o primeiro imperador.
O líder dos arisianos,
Zaeoun, era um homem de exceção. Sabia que o aliado de Caim, o Grão Satanaz,
enxergava em quase todos os lugares, como que ao mesmo tempo, e fatalmente
alertaria Caim sobre o engodo; aprouve-lhe então a temerária empresa de usar as
armas de Satanaz contra Satanaz.
No dia do encontro com
Caim, circundando o imperador com sutilezas, alertou para que a posse da vida
eterna despertaria ciúmes no príncipe deste Mundo. Caim espantara-se de que o
ancião tivesse conhecimento da existência de Satanaz; pois um dos itens do
tratado entre ele e Caim era que Caim jamais revelasse a sua existência, que
deveria ser desacreditada por todos os meios entre os povos conquistados, e
Caim até então julgava estar alcançando amplo sucesso em sua campanha de
desinformação.
Tal fato então
contribuiu para a abertura das defesas de Caim, e o ancião cresceu em seu
conceito.
– Ele lhe dirá
certamente que os frutos da árvore serão sem efeito; talvez diga que são
venenosos, ou que é na verdade a árvore do conhecimento do Bem e do Mal;
comê-lo, neste caso, será como errar duas vezes, e você será transformado num
demônio, uma sombra, um sem-mãos como ele e os seus. Não importa o que ele
dirá, é o príncipe da mentira e enganou teu pai Adão. Tentará demovê-lo de
alcançar a vida eterna e tornar-se o Príncipe de Todas as Coisas Criadas,
sobrepujando em poder até a ele mesmo.
Mas o ancião temeu a
maldição de Deus; precisava contar a verdade para o Assassino.
– Comer os frutos da
Árvore da Vida é certamente morrer; morrerás e a um tempo ressuscitarás.
Renascido, não poderá nunca ser morto novamente, seja por homem, seja por anjo.
A imortalidade que almejas, terá então sido alcançada, e não terá fim.
O ancião sabia uma
única coisa sobre a alma humana, um único basilar conhecimento, e tal
conhecimento lhe bastava para conhecer e prever os homens em toda a sua sina: o
sonho de todo homem é voltar ao Jardim. Ele os atrai como um seio ou um sol; os
homens que sequer jamais ouviram falar que houve um dia um Jardim, um Lar,
são-lhe igualmente escravos: onde e quando quer que nasçam, vivam, estejam,
trazem em si a inadequação do estrangeiro, o horror surdo da alteridade; sabem
que isto o que é, ou seja, a Realidade, simplesmente não-era-pra-ser. Não sabem
por que, não sabem como ou para onde voltar, mas intuem que houve um lugar, um
Porto-de-não-mares, Fixo, de onde ninguém deveria ter partido.
Caim era só um homem.
Dispuseram na mesa
quatro frutos, oriundos dos ‘quatro cantos da terra’.
– Estas são as quatro
frutas que apressam a imortalidade; oriundas dos quatro braços da Árvore,
recolhidas nos quatro cantos do grande Éden. Elas matam e fazem que não mais se
morra.
– Satanaz diz que
morrerei e irei ter com o Deus de meu pai -, disse Caim.
– Claro que terás com
o Deus, pois assim como Satanaz, Caim será também um deus. E liberto serás da
opressora subalternidade ao demônio. Tornando-se um seu igual, poderás compartilhar
seu incandescente destino.
Caim-O-Arguto, como
também era conhecido, tornara-se um homem de rituais e encantos, aprendendo as
artes negras que seu Mestre lhe insuflara. Assentado na mesa, o sedento e sagaz
imperador fez um pedido, ou ordenou:
– Exijo um sacrifício.
Eis dispostos os quatro frutos sobre a mesa, vindos dos quatro braços ou formas
da Árvore, sitos nos quatro cantos do grande Éden; eia, sacrifique-me quatro de
seus homens, dispondo cada corpo numa das quatro direções, onde estão os quatro
braços da grande Árvore.
Os seis últimos
arisianos vivos, cujo viver era conspirar pela morte do Imperador,
entreolharam-se em pesaroso e tenso silêncio.
Todos abaixaram os olhos. Ainda um derradeiro sacrifício seria
necessário.
– Está bem – disse um
dos arisianos. – Para que nosso Imperador viva, morreremos com prazer.
Sem esperar por mais
palavras, os quatro mais velhos abaixo do líder posicionaram-se ao redor da
mesa, sob o olhar pesaroso do mais jovem. O ancião lhes fez um sinal com a mão
direita, uma despedida. Sacaram suas adagas, e de um a um, autoimolaram-se.
– Você possui homens de grande coragem,
Zaeoun. Seriam bons generais em meu exército.
– Sim, meu senhor.
Eles compreendem perfeitamente a importância universal daquilo pelo que estão
sacrificando-se, e é com prazer que deitam suas vidas na pira do holocausto.
Entre os quatro
cadáveres, Caim comeu com sofreguidão as quatro frutas. A Árvore que ele
julgava perdida, do Jardim que ele julgava findo, ei-la mastigada, possuída,
explodindo em sinistros sabores em sua boca.
O Assassino caiu em estertores,
e gritava e sorria, urrando como um chacal, morrendo para não mais morrer.
O ancião observava-o,
com olhar cansado, sem denotar alegria ou ira, tristeza ou mesmo paz. Era uma
expressão de exaustão e algum horror.
– Comeste das frutas
do grande Éden, a grande terra que o Senhor nos confiou. Agora morres, e irás
ter com teu Deus. E serás imortal para sempre, e arderás incendiado em luz,
aprisionado nas chamas, aguardando o Juízo que há de vir sobre tudo.
* * *
O paradeiro e destino
do sexto e mais jovem dos arisianos (este é um dos que buscaram os venenosos
frutos), nunca se soube, senão que partira tornando a ser navegante, ensinando
as artes do mar por onde fosse, e silenciando sobre tudo que vivera. O ancião
Zaeoun, o de tantos nomes e a quem em vindouros anos Abraão, no deserto,
chamaria de Melquisedeque, persistiu em seu trabalho de Jardineiro, guardando a
memória do único Deus.
Sammis Reachers