Aión, um dos deuses do tempo |
“Quando fores me visitar, eu já terei viajado”. Estou me dirigindo num discurso no tempo presente a alguém, que, eu sei, no futuro, irá visitar-me. Contudo, ao visitar-me naquele futuro, este tempo será lá, então, um tempo presente e guardará também em si um tempo passado, que será o fato da minha ausência agora anunciada, do nosso desencontro num momento ainda por vir: um passado que, assim como o futuro, ainda não ocorreu e quem sabe se ocorrerá ou não?
Outras nuances entre o tempo e a linguagem, entre o tempo e a língua portuguesa, especificamente, são as riquezas, que a educação moderna sonega aos nossos alunos, dos pretéritos mais que perfeitos, do futuro do pretérito e do pretérito do subjuntivo. Um pretérito mais que perfeito que nos revela que todo passado pode ocultar um tempo ainda mais anterior (ou interior). Um futuro do passado que pode expressar essa frustração humana diante de um tempo que jamais se realizará. E, enfim, um tempo em que o passado é um desejo que aponta para um futuro incerto. Tudo isso reflete o texto de Gênesis 1: 28, que é o mandato recebido por Deus para que dominássemos sobre toda a natureza. E o tempo faz parte da natureza criada. E o homem luta contra o tempo para dominá-lo por meio da linguagem também. Assim como Deus ordenou o caos pelo poder da sua Palavra, a criatura humana reflete esse mesmo modelo. O tempo deve ser dominado pela palavra humana. É possível?
Poderíamos criar uma geração de filósofos e teólogos se existissem mais professores verdadeiramente preparados na arte da Filosofia da Gramática. Outros casos que me ocorrem é o do famigerado gerundismo que parece tentar esticar ad infinitum o tempo presente, para que o futuro nunca chegue na maioria dos departamentos públicos. O que demonstra também que professores bem treinados poderiam usar do ensino da gramática para explorar as doenças mais profundas da falta de caráter da depravada alma brasileira expressa pela língua e propor tratamento pelo uso saudável da correta locução verbal em tempo não esquivo.
E se quisermos ampliar esse rol de divertimentos linguísticos veremos que tempo e espaço acabam sendo moldados pela cosmovisão e a língua revela/domina essa realidade para nós. É o que ocorre com as palavras “machar” e “temol”, que, em hebraico, respectivamente, significam “futuro” e “passado”. O lúdico linguístico, porém, está no fato de que “machar” significa também “atrás” e “temol”, por sua vez, significa “à frente”. Portanto, o futuro está “atrás” e o passado “à frente”, porque o passado está claro diante dos nossos olhos, mas o futuro oculta-se em algum lugar ou de alguma maneira, atrás de algo que nos impede de discerni-lo. Ainda na língua hebraica, quem não se lembra da repetição do sábado e do ano do jubileu? O tempo é cíclico. O tempo está sempre retornando (diferente da nossa cosmovisão de tempo linear). É o “shanah” hebraico. Mas é uma repetição singular, única, jamais igual ao que já houvera, um “eterno retorno do irrepetível”. Quem sabe não seria por uma característica como essa que Mircea Eliade afirmou existirem línguas em que o tempo futuro não existe?
De qualquer maneira, o tempo e a sua relação com a linguagem não poderia escapar dos estudos da nossa Bibliotheca, uma vez que, para Platão (em o Timeu), o tempo é a imagem móvel da eternidade. Nesta definição platônica, três palavras precisam de uma atenção especial: “tempo”, “imagem” e “eternidade”. Pois, se como vimos no artigo “O mundo é a imagem de algo”, aqui também Platão nos surpreende com o tempo sendo uma imagem de algo, a saber, da eternidade. Contudo, nada pode ser tão rapidamente apresentado, pois que os conceitos originais estão em grego e as palavras nos revelarão segredos: O tempo (crónos) é a imagem (mímesis) da eternidade (aión). É preciso tempo para fazer como Krónos, devorando nossos filhos, as palavras, até que elas façam parte de nós e, depois de serem vomitadas, possam herdar a vida eterna.
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