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quarta-feira, 23 de outubro de 2013

LE PARTIE D'ÉCHECS


Uma só jogada
enche todo o tabuleiro, domina
a ampla mão do rei,

qualquer peão perde-se
no movimento anguloso
do cavalo. E a rainha
quando a torre adormece.

Dispersa-se o lance nas pégadas
da tela contínua, dois jogadores
homem e mulher
só nos olhos é que movem
a sua pedra eterna,

amam-se em cada silêncio,
adversários.

23/10/2013
© J.T.Parreira


(Sobre a tela de Vieira da Silva, 1943)

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

INGENUIDADE




Quando chegamos à nossa nova casa
sem paredes de tijolo e estuque
rodeada de arame onde suspendemos as estrelas
apertando ao peito o frio
ainda acreditamos
que nos dessem o maná
como Jeová no deserto aos nossos pais.

14/10/2013
 
© J.T.Parreira

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Cântico maternal, poema de Isabel Gonçalves

(Cena do filme Zuzu Angel)

Cântico maternal

Filho não vá, fique aqui.
Um dia você quis ficar em meu colo pra sempre.

Filho meu,
Hoje você engole fumaça,
Aspira veneno,
Tem por perto os que irão te matar.

Filho meu,
Eu conheço você,
Tenho aqui o abraço.
Volte correndo,
E te farei um chá.

E sempre há mais lágrimas em mim,
Dentro de uma mãe há um rio.



segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O POETA PÁRA DE ESCREVER


O poeta encomendou o silêncio
amadureceu as vestes

Se o poeta parar de escrever
onde poderão os pássaros encher
as mãos dos homens
do mistério das asas
onde poderá crescer o grão
do trigo debicado pelo vento
que é a ondulação
do mar nas searas

Se o poeta parar de escrever
o rebanho dos homens
adormece e sonha paredes em branco
sem o lirismo de uma janela

O poeta não depende do sol
nem do atavismo de estrelas
no seu sangue, o poeta nasce
de si mesmo, se mesmo se exilar
continua a ter cânticos como lábios

O poeta se parar, escreve
nos seus olhos com as lágrimas.

10/12/2009

© J.T.Parreira

domingo, 6 de outubro de 2013

TRANSMUTAÇÃO, um poema de Alexei Bueno


Miró

TRANSMUTAÇÃO

Nascemos carne. E a cada dia
nos vamos transformando em sonho.
Há sempre um patamar tristonho
Na escada em que antes não havia.

Há sempre um quarto em que vivemos
E nunca vimos. Sempre há um morto
Que bate à porta. Há sempre um porto
Que jamais houve e de onde viemos.

Há uma manhã cinza na feira
Que não se acaba há muitos anos.
Há uma mulher, nua entre panos,
Que não é nossa a vida inteira.

O tempo espera, inalterado
Como um licor,que nós subamos
Por ele abaixo, nós que vamos
Descendo-o acima em passo ousado.

Atrás há a aurora. À frente o nada.
No meio a confusão das luas.
Ah! Quem voltasse às mesmas ruas
Em senso inverso, até a entrada.

Quem desse as costas à saída
Certa e voraz, e, dessa sorte,
Fosse afastando-se da morte
Até a primeira hora da vida

E seu mistério, e se encarnasse
Nos seus idos, e fugisse
Por si acima, até que ouvisse
O choro antigo, e ainda o passasse.

Nascemos carne, e ao sonho vamos.
Somos o fio que desfaz
Toda a tapeçaria, mas
Quem é que o puxa, nem sonhamos.

Vamos fazendo-nos de ar
De crianças rijas que já fomos,
Vamos como explodindo em gomos
De ser, um fruto a se espalhar.

Nossos amigos são de vento
Cada vez mais. As nossas casas
Grãos que o sol doura. Soam asas
No nosso cofre mais sedento.

Para isso apenas nos gerastes,
Para ser sonho, mães de sonho.
Há sempre um pássaro medonho
Nos nomeando entre umas hastes.

Há sempre um baile de sumidos
Na íntima praça inexistente.
Há um branco sol sempre presente
Na noite em que vamos perdidos.

Há um rosto cruel que nos exorta.
E escadas. E a manhã na feira
Que vai durando a vida inteira.
Há o patamar. E um beijo. E a porta.

26/10/1998

Do livro Em Sonho (Record, 1999)