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domingo, 30 de setembro de 2012

MARYLIN



A sua nudez não foi suficiente

não surpreendeu

a morte, os seus olhos

não penetraram nada

adormeceu, ou foi

adormecendo.



30/9/2012

© J.T.Parreira

Luís Fernando Veríssimo: O Silêncio




A substituição da máquina de escrever pelo computador não afetou muito o que se escreve. Quer dizer, existe toda uma geração de escritores que nunca viram um tabulador (que, confesso, eu nunca soube bem para o que servia) e uma literatura pontocom que já tem até os seus mitos, mas mesmo num processador de texto de último tipo ainda é a mesma vel
ha história, a mesma luta por amor e glória botando uma palavra depois da outra com um mínimo de coerência, como no tempo da pena de ganso.

O novo vocabulário da comunicação entre micreiros, feito de abreviações esotéricas e ícones, pode ser um desafio para os não iniciados, mas o que se escreve com ele não mudou. Mudaram, isto sim, os entornos da literatura.

Por exemplo: não existem mais originais. Os velhos manuscritos corrigidos, com as impressões digitais, por assim dizer, do escritor, hoje são coisas do passado: com o computador só existe versão final.

O processo da criação foi engolido, não sobram vestígios. Só se vê a sala do parto depois que enxugaram o sangue e guardaram os ferros.

Nos jornais, o efeito do computador foi muito maior do que o fim da lauda rabiscada e da prova de paquê. O computador restabeleceu o que não existia nas redações desde — bem, desde as penas de ganso. O silêncio.

Um dia alguém ainda vai escrever um tratado sobre as consequências para o jornalismo mundial da substituição do metralhar das máquinas de escrever pelo leve clicar dos teclados dos micros, que transformou as redações, de fábricas em claustros. A desnecessidade do grito para se fazer ouvir e a perda da identificação do seu ofício com um barulhento trabalho braçal mudou o caráter do jornalista. Se para melhor ou para pior, é discutível.

Defendo, sem muita convicção, a tese de que a mudança da máquina de escrever para o computador também determinou uma migração da esquerda para a direita nas redações brasileiras. Se hoje não vale mais a velha máxima de que jornalista era de esquerda até o nível de redator chefe e de direita daí para cima, a culpa é da informatização. A nova direita é filha do silêncio.

Mas é no futuro que a troca do bom preto no branco pelo impulso eletrônico e o texto virtual fará a maior confusão.

A internet está cheia de textos apócrifos, inclusive alguns atribuídos a mim pelos quais recebo xingamentos (e tento explicar que não são meus) e elogios (que aceito, resignado), contra os quais nada pode ser feito e que, desconfio, sobreviverão enquanto tudo que os pobres autores deixarem feito por meios obsoletos virará cinza e será esquecido. Nossa posteridade será eletrônica e, do jeito que vai, será fatalmente de outro.


quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Jorge Luis Borges: Bloomsday


Bloomsday


Num só dia do homem estão os dias
do tempo, desde aquele inconcebível 
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus prefixou os dias e agonias
até o outro em que o rio ubíquo
do tempo secular torne à nascente,
que é o Eterno, e se apague no presente,
no futuro, no ontem, no que ora possuo.
Entre a aurora e a noite está a história
universal. E vejo desde o breu, 
junto a meus pés, os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dai-me, Senhor, coragem e alegria
para escalar o cume deste dia.

(Cambridge, 1968)

Fonte: Poesia, de Jorge Luis Borges. Editora Companhia das Letras, 2009. Tradução de Josely Vianna Baptista.

domingo, 23 de setembro de 2012

HAMLET




 
“Acordei com esta cabeça de mármore nas mãos”
Yorgos Seferis


Acordo com esta cabeça
com estes buracos no lugar dos olhos
e o seu silêncio pesa-me nas mãos
acordo todas as manhãs
e o dilema e as perguntas
pesam-me no espírito
Será mais nobre sofrer na alma, não
pegar em armas
ou sofrer os dentes do destino?
A cada palavra um eco vem
que se perde a caminho de nada
dentro desta caveira, sem servidão
indomável, ninguém.


22/9/2012


© J.T.Parreira

sábado, 22 de setembro de 2012

Bloomsday Confraria



Bloomsday Confraria

Aos amigos de perto e muito longe, homens sem nau.

Ocidental humana Fênix,
Coração do Cânon,
basilar arquétipo, herói fundacional
- ULISSES: renasça

Arme, avatar de Prometeu, um grande navio e eu com prazer
deixarei tudo e o tripularei contigo
e tenho mais 32 amigos
de oito pátrias e de todas as profissões,
homens cuja cordata vida é a secreta espera de um Sinal
e que irão aonde você for, aonde as Parcas nos guiarem
olvidaremos de bom grado nossas mulheres e memórias
de Ítaca, Nova Iorque ou Beirute
abandonaremos nossos antigos nomes,
adotaremos um único coletivo nome: LÁZARO

Iremos contigo por onde mares, Odisseu
para o próprio e reverso coração da alteridade
iremos, pois de há muito já não suportamos

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

THOR ODINSON



THOR ODINSON

URSS, 1941

Para Rui Miguel Duarte

Noturno, nigromante irmão
tua blitzkrieg, tua encouraçada traição
 rompe sobre meus pântanos gelados,
minhas extensões de
desconsolo e sesmarias de cismas

- Eia!, antigo amigo: acelere vossa marcha
de antiterno anticristo
eu já incendiei meus celeiros
para iluminar a chegada de teu cortejo
já arregimentei minhas crianças
para fábricas e fronts...
Expandi minhas aberturas
como uma cortesã, para saciar
com meu rubro (abr)aço
a solidão de teus soldados

Filho de Ymir, meu meio-irmão
traga célere-impávido
teu peito ávido
até o aguilhão forjado
de meu sangue congelado,
curvada Foice, meu estendido
punhal de frio.

Loki meu irmão,
fabulário de ardis, vem:
traga a tepidez mumificada de teu rosto
de encontro ao trovão de meu Martelo.

Ao que vencer, Midgard.

Este poema deveria ter entrado no livro Poemas da Guerra de Inverno, mas seu rascunho acabou ficando 'perdido' no bloco de notas de meu telefone celular, e só agora o reencontrei e pude trabalhá-lo melhor. Ofereço-o ao amigo Rui Miguel Duarte, entusiasta de primeira hora de meus poemas de guerra. Utilizei as conhecidas personagens da Mitologia Nórdica para configurar alemães e soviéticos. Loki, filho do Gigante do Gelo Ymir, foi adotado por Odin, pai do deus do trovão, Thor, tornando-se assim meio-irmão deste, no reino celestial de Asgard. Com o tempo, revelou sua face ardilosa, traindo seu irmão. 'Midgard' é o que chamamos de planeta Terra... Quanto à metáfora da Foice e do Martelo, está por demais patente, mas cabe lembrar aos muito muito jovens leitores que eram (são) símbolos do Comunismo.

domingo, 16 de setembro de 2012

A Ilha de Deleuze

'O Refúgio', Félix Nussbaum

Escrevi esta pequena série de poemas minimalistas inspirado pelo texto de Gilles Deleuze, 'Causas e Razões das Ilhas Desertas', publicado há poucos dias aqui mesmo neste blog (leia o texto AQUI).

A Ilha de Deleuze


I
Devoro a lua,
a lua devora-me:
quedamo-nos
ilhas,
fomes.


II
Deserta(da) Ilha,
refundação da Realidade:
re-realidade,
ilha transprimal


III
De antropoflorescer
quasimpossível, pedregoso,
pedral: 
rocha, rock, roca:
Ilha das Rocas,
Distância.


IV
Ovo Cósmico da anti-
candura, sequestro
de Ganimedes, 
Graal de chão:
não-Adão, Noé,
fato e mito e pai & status
da (re)fundação do Humano.


V
Ilha:
Supressão.


VI
Meu coração, mimodrama d'ilha,
pergaminho de sagas:
compartilho tua fome,
 - Inadequação.


VII
Ilha: face oculta
da lua, ilha.
Asa de água, quilha.
Ilha, quilha do homem:
Espada.

Ilha-deserta-ilha:

Espada-de-habitar.

O Velho Guitarrista Cego




O cego dobra-se sobre a sua guitarra

como uma bengala

nas mãos toma a guitarra e parte

o som, repartindo-o por todos

suas mãos

abraçam uma sombra

Os dedos equilibram-se

com os seus olhos ocultos

nas cordas da guitarra.



7/9/2012

© J.T.Parreira 


sexta-feira, 14 de setembro de 2012

do que quer falar o Poeta




Por vezes da alegria. Num dia triste
que começa a quebrar-se
com as vozes aos pulos, contentes
das crianças. Tantas vezes
do mar, não exactamente do mar que se vê
mas daquele que banha de lume turquesa
as ilhas mais distantes

Outras vezes da morte, não explícita
mas dos cristais que se partem nos olhos
de quem morre
Quase sempre a encher-se de silêncio
para encontrar uma palavra, aquela
mesma, pequenina, amedrontada
caída da árvore
no meio de palavras enormes.

13/9/2012


© J.T.Parreira

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Gilles Deleuze: Causas e Razões das Ilhas Desertas


(Manuscrito dos anos 50) 

Os geógrafos dizem que há dois tipos de ilhas. Eis uma informação preciosa para a imaginação, porque ela aí encontra uma confirmação daquilo que, por outro lado, já sabia. Não é o único caso em que a ciência torna a mitologia mais material e em que a mitologia torna a ciência mais animada. As ilhas continentais são ilhas acidentais, ilhas derivadas: estão separadas de um continente, nasceram de uma desarticulação, de uma erosão, de uma fratura, sobrevivem pela absorção daquilo que as retinha.As ilhas oceânicas são ilhas originárias, essenciais: ora são constituídas de corais, apresentando-nos um verdadeiro organismo, ora surgem de erupções submarinas, trazendo ao ar livre um movimento vindo de baixo; algumas emergem lentamente, outras também desaparecem e retornam sem que haja tempo para anexa-las.  Esses dois tipos de ilhas, originárias ou continentais, dão testemunho de uma oposição profunda entre o oceano e a terra. Umas nos fazem lembrar que o mar está sobre a terra, aproveitando-se do menor decaimento das estruturas mais elevadas; as outras lembram-nos que a terra está ainda aí, sob o mar, e congrega suas forças para romper a superfície. Reconheçamos que os elementos, em geral, se detestam, que eles têm horror uns dos outros. Nada de tranqüilizador nisso tudo. Do mesmo modo, deve parecer-nosfilosoficamente normal que uma ilha esteja deserta. O homem só pode viver bem, e em segurança, ao supor findo (pelo menos dominado) o combate vivo entre a terra e o mar. Ele quer chamar esses dois elementos de pai e mãe [12], distribuindo os sexos à medida do seu devaneio. Em parte, ele deve persuadir-se de que não existe combate desse gênero; em parte, deve fazer de conta que esse combate já não ocorre. De um modo ou de outro, a existência das ilhas é a negação de um tal ponto de vista, de um tal esforço e de uma tal convicção. Será sempre causa de espanto que a Inglaterra seja povoada, já que o homem só pode viver sobre uma ilha esquecendo o que ela representa. Ou as ilhas antecedem o homem ou o sucedem. 

Mas tudo o que nos dizia a geografia sobre dois topos de ilhas, a imaginação já o sabia por sua conta e de uma outra maneira. O impulso NT do homem, esse que o conduz em direção às ilhas, retoma o duplo movimento que produz as ilhas em si mesmas. Sonhar ilhas, com angústia ou alegria, pouco importa, é sonhar que se está separando, ou que já se está separado, longe dos continentes, que se está só ou perdido; ou, então, é sonhar que se parte de zero, que se recria, que se recomeça. Havia ilhas derivadas, mas a ilha é também aquilo em direção ao que se deriva; e havia ilhas originárias, mas a ilha é também a origem, a origem radical e absoluta. Separação e recriação não se excluem, sem dúvida: é preciso ocupar-se quando se está separado, é preferível separar-se quando se quer recriar; contudo, uma das duas tendências domina sempre. Assim, o movimento da imaginação das ilhas retoma o movimento de sua produção, mas ele não tem o mesmo objeto. É o mesmo movimento, mas não o mesmo móbil. Já não é a ilha que se separou do continente, é o homem que, estando sobre a ilha, encontra-se separado do mundo. Já não é a ilha que se cria do fundo da terra através das águas, é o homem que recria o mundo a partir da ilha e sobre as águas. Então, por sua conta, o homem retoma um e outro dos movimentos da ilha e o assume sobre uma ilha que, justamente, não tem esse movimento: pode-se derivar em direção a uma ilha todavia original, e criar numa ilha tão-somente derivada. Pensando bem, encontrar-se-á aí uma nova razão pela qual toda ilha é e permanecerá teoricamente deserta.
Para que uma ilha deixe de ser deserta, não basta, com efeito, que ela seja habitada. Se é verdade que o movimento do homem em direção à ilha retoma o movimento da ilha antes dos homens, ela pode ser ocupada por homens em geral, mas é ainda deserta, mais deserta ainda, desde que eles estejam suficientemente, isto é, [13] absolutamente separados, desde que eles sejam suficientemente, isto é, absolutamente criadores. Sem dúvida, de fato, isso nunca é assim, se bem que o náufrago se aproxime de uma tal condição. Mas, para que isso seja assim, há de se impelir na imaginação o movimento que conduz o homem à ilha. É só em aparência que um tal movimento vem romper o deserto da ilha; na verdade, ele retoma e prolonga o impulso que a produzia como ilha deserta; longe de compromete-la, esse movimento leva-a à sua perfeição, ao seu apogeu. Em certas condições que o atam ao próprio movimento das coisas, o homem não rompe o deserto, sacraliza-o. Os homens que vêm à ilha, ocupam-na realmente e a povoam; mas, na verdade, se estivessem suficientemente separados, se fossem suficientemente criadores, eles apenas dariam à ilha uma imagem dinâmica dela mesma, uma
consciência do movimento que a produziu, de modo que, através do homem, a ilha, enfim, tomaria consciência de si como deserta e sem homens. A ilha seria tão-somente o sonho do homem, e o homem seria a pura consciência da ilha. Para tanto, ainda uma vez, uma única condição: seria preciso que o homem se sujeitasse ao movimento que o conduz à ilha, movimento que prolonga e retoma o impulso que produzia a ilha. Então, a geografia se coligaria com o imaginário. Desse modo, a única resposta à questão cara aos antigos exploradores (“que seres existem na ilha deserta?”) é que o homem já existe aí, mas um homem pouco comum, um homem absolutamente separado, absolutamente criador, uma Idéia de homem, em suma, um protótipo, um homem que seria quase um deus, uma mulher que seria uma deusa, um grande Amnésico, um puro Artista, consciência da Terra e do Oceano, um enorme ciclone, uma bela bruxa, uma estátua da Ilha de Páscoa. Eis o homem que precede a si mesmo. Na ilha deserta, uma tal criatura seria a própria ilha deserta na medida em que ela se imagina e se reflete em seu movimento primeiro. Consciência da terra e do oceano, tal é a ilha deserta, pronta para recomeçar o mundo. Porém, dado que os homens, mesmo voluntários, não são idênticos ao movimento que os põe na ilha, eles não reatam o impulso que a produz; é sempre de fora que encontram a ilha e o fato de sua presença contraria, nela, o deserto. Portanto, a unidade da ilha deserta e do seu habitante não é real, mas imaginária, como a idéia de ver [14] atrás da cortina quando ali não se está. E mais: é duvidoso que a imaginação individual possa por si mesma elevar-se até essa admirável identidade; veremos que isso requer a imaginação coletiva no que ela tem de mais profundo, nos ritos e nas mitologias.
A confirmação, pelo menos negativa, de tudo isso pode ser encontrada nos próprios fatos, quando se pensa naquilo que uma ilha deserta é realmente, geograficamente. A ilha e ilha deserta, com mais forte razão, são noções extremamente pobres ou frágeis do ponto de vista da geografia; elas têm apenas um fraco teor científico. Isso é um privilégio para elas. Não há unidade objetiva alguma no conjunto das ilhas. Menos ainda nas ilhas desertas. Sem dúvida, a ilha deserta pode ter um solo extremamente pobre. Deserta, ela pode ser um deserto, mas isso não é necessário. Se o verdadeiro deserto é inabitado, isso ocorre na medida em que não apresenta as condições de direito que tornariam possível a vida, vida vegetal, anima ou humana. Contrariamente, que a ilha deserta esteja inabitada mantém-se como puro fato devido às circunstâncias, isto é, aos arredores. A ilha é o que o mar circunda e aquilo em torno do que se dão voltas, é como um ovo. Ovo do mar, ela é arredondada. Tudo se passa como se ela tivesse posto em torno de si o seu deserto, fora dela. O que está deserto é o
oceano que a circunda inteiramente. É em virtude das circunstâncias, por razões distintas do princípio do qual ela depende, que os navios passam ao largo e não param. Mais do que ser um deserto, ela é desertada. Desse modo, mesmo que ela, em si mesma, possa conter as mais vivas fontes, a fauna mais ágil, a flora mais colorida, os mais surpreendentes alimentos, os mais vivos selvagens e, como seu mais precioso fruto, o náufrago, além de contar, finalmente, por um instante, com o barco que a vem procurar, apesar de tudo isso ela não deixa de ser a ilha deserta. Para modificar tal situação, seria preciso operar uma redistribuição geral dos continentes, do estado dos mares, das linhas de navegação.
Novamente, isso quer dizer que a essência da ilha deserta é imaginária e não real, mitológica e não geográfica. Simultaneamente, seu destino está submetido às condições humanas que tornam possível uma mitologia. A mitologia não nasceu de uma simples vontade, e os povos admitiram bem cedo não compreender seus mitos. É nesse mesmo momento que uma [15] literatura começa. A literatura é o ensaio que procura interpretar muito engenhosamente os mitos que já não se compreende, no momento em que eles já não são compreendidos, porque já não se sabe sonha-los e nem reproduzi-los. A literatura é o concurso dos contra-sensos que a consciência opera naturalmente e necessariamente sobre os temas do inconsciente; como todo concurso, ela tem seus preços. Seria preciso mostrar como a mitologia entra em falência nesse sentido e morre em dois romances clássicos da ilha deserta, Robinson e Suzana. Suzana e o PacíficoDL acentua o aspecto separado das ilhas, a separação da moça que aí se encontra; Robinson NT acentua o outro aspecto, o da criação, o do recomeço. É verdade que são bem diferentes as maneiras pelas quais a mitologia entra em falência nesses dois casos. Com a Suzana de Giraudoux a mitologia sofre a morte mais bonita, a mais graciosa. Com Robinson, a mais penosa. É difícil imaginar um romance tão aborrecido, e é uma tristeza ver ainda crianças lendo-o. A visão de mundo de Robinson reside exclusivamente na propriedade e jamais se viu proprietário tão moralizante. A recriação mítica do mundo a partir da ilha deserta cede lugar à recomposição da vida cotidiana burguesa a partir de um capital. Tudo é tirado do barco, nada é inventado, tudo é penosamente aplicado na ilha. O tempo é tão-só um tempo necessário ao capital para obter um ganho ao final de um trabalho. E a função providencial de Deus é garantir o lucro. Deus
reconhece os seus, as pessoas de bem, porque elas têm belas propriedades, ao passo que os maus têm péssimas propriedades, maltratadas. A companhia de Robinson não é Eva, mas Sexta Feira, dócil ao trabalho, feliz por ser escravo, muito rapidamente enfastiado de antropofagia. Todo leitor sadio sonharia vê-lo finalmente comer Robinson. Esse romance representa a melhor ilustração da tese que afirma o liame entre capitalismo e protestantismo. Robinson Crusoe desenvolve a falência e a morte da mitologia no puritanismo. Tudo muda com Suzana. Com ela, a ilha deserta é um conservatório de objetos já prontos, de objetos luxuosos. A ilha já é imediatamente portadora daquilo que a civilização levou séculos para produzir, para [16] aperfeiçoar, amadurecer. Porém, com Suzana, a mitologia também morre, é verdade que de uma maneira parisiense. Suzana nada tem para recriar; a ilha deserta lhe dá o duplo de todos os objetos da cidade, de todas as vitrines de magazines, duplo inconsistente, separado do real, pois ele não recebe a solidez que os objetos ganham ordinariamente nas relações humanas, no seio das vendas e compras, das trocas e dos presentes. É uma moça insípida. Seus companheiros não são Adão, mas jovens cadáveres; e quando reencontrar os homens vivos, ela os amará com um amor uniforme, à maneira de párocos, como se o amor fosse o limiar mínimo de sua percepção.
Trata-se de reencontrar a vida mitológica da ilha deserta. Contudo, na própria falência, Robinson nos dá uma indicação: inicialmente, ele precisaria de um capital. Quanto à Suzana, antes de tudo, ela estava separada. E nem ele nem ela, finalmente, poderiam ser o elemento de um par. É preciso restituir essas três indicações à sua pureza mitológica e retornar ao movimento da imaginação que faz da ilha deserta um modelo, um protótipo da alma coletiva. Primeiramente, é verdade que não se opera a própria criação a partir da ilha deserta, mas a re-criação, não o começo, mas o re-começo. Ela é a origem, mas origem segunda. A partir dela tudo recomeça. A ilha é o mínimo necessário para esse recomeço, o material sobrevivente da primeira origem, o núcleo ou o ovo irradiante que deve bastar para re-produzir tudo. Evidentemente, isso tudo supõe que a formação do mundo se dê em dois tempos, em dois estágios, nascimento e renascimento; supõe que o segundo seja tão necessário e essencial quanto o primeiro; supõe, portanto, que o primeiro esteja necessariamente comprometido, que ele tenha nascido para uma retomada e já re-negado numa catástrofe. Somente há um segundo nascimento porque houve uma catástrofe e, inversamente, há catástrofe após a origem porque deve haver, desde a origem, um segundo nascimento. Podemos encontrar em nós a fonte desse tema: para apreciar a vida, nós a alcançamos não em sua produção, mas em sua reprodução. O animal, cujo modo de reprodução se ignora, ainda não ocupou lugar entre os vivos. Não basta que tudo comece, é preciso que tudo se repita, uma vez encerrado o ciclo das combinações possíveis. O segundo momento não é [17] aquele que sucede o primeiro, mas é o reaparecimento do primeiro quando se encerrou o ciclo dos outros momentos. A segunda origem, portanto, é mais essencial que a primeira, porque ela nos dá a lei da série, a lei da repetição, da qual a primeira origem apenas nos dava os momentos. Porém, mais ainda do que nos nossos devaneios, esse tema se manifesta em todas as mitologias. Ele é bem conhecido como mito do dilúvio. A arca se detém na única porção da terra que não está submersa, lugar circular e sagrado de onde o mundo recomeça. É uma ilha ou uma montanha, ambas ao mesmo tempo, pois a ilha é uma montanha marinha e a montanha é uma ilha ainda seca. Eis a primeira criação tomada numa recriação que se concentra numa terra santa ou no meio do oceano. Segunda origem do mundo, mais importante do que a primeira é a ilha santa: muitos mitos nos dizem que aí se encontra um ovo, um ovo cósmico. Como ela forma uma segunda origem, ela é confiada ao homem, não aos deuses. Ela está separada, separada por toda a espessura do dilúvio. O oceano e a água, com efeito, são o princípio de uma tal segregação que, nas ilhas santas, são constituídas por comunidades exclusivamente femininas, como as de Circe e Calipso. Enfim, o começo partia de Deus e de um par, mas não o recomeço, que parte de um ovo, de modo que a maternidade mitológica é freqüentemente uma partenogênese. A idéia de uma segunda origem dá todo seu sentido à ilha deserta, sobrevivência da ilha santa num mundo que tarda para recomeçar. No ideal do recomeço há algo que precede o próprio começo, que o retoma para aprofunda-lo e recua-lo no tempo. A ilha deserta é a matéria desse imemorial ou desse mais profundo.

Tradução de
 Luiz B. L. Orlandi

Do livro A Ilha Deserta e Outros Textos (Ed. Iluminuras, 2005)

DL Texto manuscrito dos anos 50, inicialmente destinado a um número especial consagrado às ilhas desertas pelo magazine Nouveau Fémina. Esse texto nunca foi publicado. Na bibliografia esboçada por Deleuze em 1989 ele figura sob a rubrica “Diferença e repetição” (ver apresentação).
NT [Apesar de dispormos da palavra elã, traduziremos o termo francês élan por impulso].
DL L. Giraudoux, Suzanne et 

domingo, 9 de setembro de 2012

OCEÂNICOS

“Um leve cheiro a mar”
Sophia de Mello Breyner Andresen, “Elsinore”

montados no dorso dos roazes nomeamos o mar 
os seus densos e duros mistérios deitados na praia
recebemos no rosto a vaga leve de perfume
que ele traz e que esparge sobre o nosso descanso

alcandorados nas ameias dos castelos
em vigia pelos passos do gigante
pomos a princesa verde em fuga
e entre algas a escondemos

com as gotas de sal resplandecendo na pele
vamos pelas ondas vamos por onde nos leva
a maré para as longas paragens
de outros continentes e ilhas
vamos em navegação no dorso dos tubarões
de olhos lacrimejantes de luz
e sempre com a noite pelos tornozelos

Rui Miguel Duarte
9/09/12

sábado, 8 de setembro de 2012

SPES, poema de Rubén Darío


SPES

Jesus, incomparável perdoador de injúrias,
Ouça-me; semeador de trigo, dá-me o terno
Pão de tuas hóstias; dá-me, contra o cruel inferno,
Uma graça purificadora de iras e luxúrias.

Diga-me que este horror terrível da agonia
Que me obceca, é não mais que minha culpa nefanda,
Que ao morrer encontrarei a luz de um novo dia
E que então ouvirei meu "Levanta-te e anda!"

Tradução de Sammis Reachers

in Breve Antologia da Poesia Cristã Universal (livro eletrônico gratuito)

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

O QUE O ROSTO

“o meu rosto era resistente como uma pedra”
Isaías 50:7

o meu rosto é esculpido de espinhos
não se vira às intempéries
nem faltaram mãos para lhe golpearem
o sangue foi mordido pelos ventos
de pontas rombas não tem pétalas nas maçãs,
o Senhor o fundou como uma pedra serena dura
o meu rosto escorreu o esputo
dos meus ofensores mas nada o amoleceu

uma pedra é o meu rosto
as lâminas contra ele disparadas
quebra, pedra dura serena sobre pedra
à trepidação das vozes dos meus acusadores

o Senhor o fortificou de malares oblongos
e nele pintou a rosa

Rui Miguel Duarte
05/09/12

terça-feira, 4 de setembro de 2012

O Livro - um texto de Jorge Luis Borges


Aula proferida na Universidade de Belgrano em 1978
Traduzido de "Obras Completas IV" - Borges Oral - ed. EMECÉ

Dentre os instrumentos inventados pelo homem, o mais impressionante é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da visão; o telefone uma extensão da voz e finalmente temos o arado e a espada, ambos extensões do braço. O livro, porém, é outra coisa. O livro é uma extensão da memória e da imaginação. Em César e Cleópatra de Shaw, quando se fala sobre a biblioteca de Alexandria , os livros são descritos como a memória da humanidade. O livro é isto e muito mais, é também a imaginação. O que é o nosso passado senão uma série de sonhos? Afinal que diferença pode haver entre recordar sonhos e recordar o passado ? A função do livro é recordar.
Pensei, certa vez, em escrever uma história do livro, não do ponto de vista físico. Os livros não me interessam fisicamente - sobretudo as coleções dos bibliófilos, em geral imensas -, mas sim como eles podem ser avaliados ao longo do tempo. Splenger me antecipou, em seu livro "Decadência do Ocidente" onde têm páginas preciosas sobre o livro. Com alguma pitada pessoal penso ater-me aqui ao que disse Splenger
Os antigos não professavam nosso culto ao livro - coisa que me surpreende. Para eles o livro é um sucedâneo da palavra oral. A frase latina "Scripta manet, Verba volans" não quer dizer que a palavra oral seja volátil, mas sim que a palavra escrita permanecerá e está morta. Por sua vez a palavra oral tem algo de sutil, volátil, sublime e sagrado, como disse Platão. Todos os mestres da humanidade foram, curiosamente, mestres orais .
Vejamos o primeiro caso: Pitágoras. Sabemos que, deliberadamente, Pitágoras nada escreveu. Pitágoras não escreveu porque não quis. Não escreveu porque não desejava limitar-se à palavra escrita. Sentiu sem dúvida que a letra mata mas o espírito vivifica; o que, mais tarde, será citado na Bíblia. Ele deve ter sentido isto, e não quiz limitar-se à palavra escrita, por isto Aristóteles nunca fala de Pitágoras, mas sim dos Pitagóricos. Nos disse por exemplo que os pitagóricos professavam a crença, o dogma, do eterno retorno, que mais tarde foi redescoberto por Nietzsche. Ou seja, a idéia do tempo cíclico, que foi refutada por Santo Agostinho em Cidade de Deus. Santo Agostinho nos diz, através de uma linda metáfora, que a cruz de Cristo nos salva do labirinto circular dos estóicos. A idéia de um tempo cíclico também foi revista por Hume, Blanqui e tantos outros.
Pitágoras não escreveu porque não quis. Queria que seu pensamento permanecesse vivo além de sua morte física, na mente de seus discípulos. Daqui veio aquele ditado (eu não sei grego, tratarei de dizê-lo em Latim) "Magister dixit" (o mestre assim disse ). Isto não significa que estivessem limitados ao que o mestre havia dito, ao contrário, afirmavam a liberdade de continuarem refletindo o pensamento original do mestre.
Não sabemos se Pitágoras foi o iniciador da doutrina do tempo cíclico, porém sabemos que seus discípulos a professavam. Pitágoras morre físicamente e eles, por um tipo de transmigração - e isto teria agradado a Pitágoras - seguem pensando e repensando seu pensamento, e quando se reprovam ao dizer algo novo, se refugiam naquela fórmula: "assim disse o Mestre - Magister Dixit."
Porém temos outros exemplos. Platão, em um exemplo ilustre, disse que os livros são como esfinges (pode ter pensado em esculturas ou em quadros), que nós cremos que estão vivas, porém se lhes perguntamos sobre alguma coisa elas nada respondem. Então para corrigir esta mudez dos livros, ele inventa o diálogo platônico. Digamos que Platão multiplica-se em vários personagens: Sócrates, Gorgias e os demais. Também podemos pensar que Platão queria consolar-se da morte de Sócrates imaginando que este seguiria vivendo em seus Diálogos. Frente a qualquer questão Platão perguntava-se: "O que Sócrates pensaria a respeito disto?". Deste modo Platão imortalizou Sócrates, que também não deixou nada escrito e foi um mestre oral.
Sabemos que Cristo escreveu uma única vez algumas palavras na areia que o vento acabou apagando. Ao que se saiba não escreveu mais nada. Buda também foi um mestre oral e só ficaram suas prédicas. Temos uma frase de Santo Anselmo "um livro nas mãos de um ignorante é tão perigoso quanto uma espada nas mãos de uma criança" . Isto é o que se pensava dos livros.
No Oriente existe ainda um conceito de que um livro não deve revelar as coisas, um livro deve, simplesmente, ajudar-nos a descobri-las. Apesar de minha ignorância do Hebráico, estudei algo da Cabala. Li as versões inglesas e alemãs do Zohar (O Livro do Esplendor), El Sefer Yezira (O Livro das Relações). Sei que estes livros não estão escritos para serem entendidos, porém para serem interpretados , são desafios para que o leitor continue a pensar.
A antiguidade clássica não teve este nosso respeito pelo livro, embora saibamos que Alexandre da Macedônia tinha, em baixo do travesseiro, a Ilíada e a espada, estas duas armas. Havia grande respeito por Homero, porém não era considerado um escritor sagrado no sentido que temos hoje pela palavra. Não se pensava na Ilíada e na Odisséia como textos sagrados, eram livros respeitados, porém podiam ser criticados. Platão pode expulsar os poetas de sua República sem cair em suspeita de heresia.
Do testemunho dos antigos contra os livros podemos apontar um muito curioso de Sêneca. Em suas admiráveis cartas a Lucílio, tem uma dirigida contra um indivíduo muito vaidoso, de quem se diz que tem uma biblioteca de cem volumes; e quem - pergunta Sêneca - pode ter tempo para ler cem volumes ?. Por outro lado hoje se apreciam bibliotecas grandes.
Na antiguidade tem uma coisa de difícil compreensão, que não se parece com nosso culto ao livro. O livro sempre é visto como uma extensão da palavra oral, porém surge no Oriente um conceito novo, de todo estranho à antiguidade clássica: a do livro sagrado . Vamos tomar dois exemplos, começando pelo mais recente: os mulçumanos. Eles pensam que o Alcorão [Do ár. al-qurAYn, 'o que deve ser lido.] é anterior à criação, anterior à língua árabe; é um dos atributos de Deus, não é uma obra de Deus, é como se fosse sua misericórdia ou sua justiça. No Alcorão se fala de uma forma muito estranha do livro original. Este livro é um exemplar do Alcorão escrito no céu. Talvez venha a ser o arquétipo ideal de Platão do Alcorão, e este mesmo livro, nos diz o Alcorão, que está escrito no céu, que é o atributo de Deus e anterior à criação. Assim nos dizem os suleimans, os doutores muçulmanos.
Temos outros exemplos mais próximos de nós: A Bíblia, ou mais precisamente o Tora ou o Pentateuco. Acredita-se que estes livros foram ditados pelo Espírito Santo. Isto é um fato interessante: atribuir a livros de diversos autores e épocas diferentes a um único espírito, porém a própria Bíblia diz que o Espírito sopra de onde quer. Os hebreus tiveram a idéia de juntar obras literárias de diversas épocas e formar com elas um único livro, cujo título é Tora,ou Bíblia em Grego. A todos estes livros atribuem a um único autor: O Espírito A Bernard Shaw perguntaram uma vez se acreditava que o Espírito Santo havia escrito a Bíblia. Ele respondeu: Todo livro que vale a pena ser lido foi escrito pelo Espírito. Eu acrescento: Todo livro que vale a pena ser relido foi escrito pelo Espírito.
Vale dizer, um livro tem que ir além da intenção de seu autor. A intenção do autor é uma pobre coisa humana, falível, porém o livro tem que ir além. Don Quijote por exemplo, é mais do que uma sátira aos livros de cavalaria. É um texto absoluto em que nada é improvisado. Pensemos nas consequências desta idéia. Por exemplo se digo:
Correntes águas, puras, cristalinas,
árvores que estais refletindo nelas
verde prado, cheio de frescas sombras.
É evidente que os três versos são de onze sílabas. Foi proposta pelo autor, assim o quiz..
Porém o que é isto comparado com uma obra escrita pelo Espírito, o que é isto comparado com o conceito de Divindade, que se curva frente à literatura e dita um livro. Neste livro nada poderia ser ao acaso, tudo teria que estar justificado, letra a letra. Entende-se, por exemplo que o início da Bíblia: Bereshit bara Elohim, começa com a letra B, porque isto corresponde a bendizer. Trata-se de um livro em que nada é ao acaso, absolutamente nada. Isto nos leva à Cabala, nos leva ao estudo das letras de um livro sagrado ditado por uma divindade, que vem a ser o contrário do que pensavam os antigos. Estes pensavam na musa de um modo bastante vago. "Canta, musa, a cólera de Aquiles" diz Homero no princípio da Ilíada. A musa tem, aqui, o seu correspondente à inspiração. Por outro lado pensar no Espírito é pensar em coisa mais concreta, mais forte: Deus, que nos condescende a literatura. É Deus que escreve um livro; e neste livro nada é ao acaso, nem o número de letras nem a quantidade de sílabas de cada versículo, nem o fato de que possamos fazer jogos de palavras com as letras, de que possamos considerar o valor numérico das letras. Tudo foi previsto. O segundo grande conceito dos livros - repito - é que ele pode ser uma obra divina. Talvez isto esteja mais próximo daquilo que agora sentimos do que da idéia que os antigos tinham dos livros, quer dizer, o livro é um mero sucedâneo da palavra oral.
Logo que cai a crença do livro sagrado ela é substituída por outras crenças. Por exemplo a de que cada país está representado por um livro. Recordemos que os mulçumanos dominam aos judeus, o povo do livro; recordemos a frase de Heinrich Heine sobre uma nação cuja pátria era um livro: a Biblia dos judeus. Temos então um novo conceito, o de que cada país tem pode ser representado por um livro, ou ao menos por um autor, que pode ser autor de muitos livros.
É curioso, não creio que isto tenha sido observado antes, que os países elejam para seus representantes autores que não se parecem com eles. Alguém poderia pensar, por exemplo, que a Inglaterra poderia escolher Doutor Johnson como seu representante. Porém não! A Inglaterra escolheu Shakespeare, e Shakespeare é, digamos assim, o menos inglês dos escritores ingleses. O típico da Inglaterra é o Understatement, que significa dizer um pouco menos sobre as coisas. Ao contrário, Shakespeare tendia à hipérbole na metáfora e não nos surpreenderia que Shakespeare tivesse sido, por exemplo, italiano ou judeu. Outro caso é o da Alemanha. Um país admirável, tão facilmente fanático, que elege precisamente um homem tolerante, que não é fanático, e a quem o conceito de pátria não é demasiadamente importante, elege Goethe. A Alemanha é representada por Goethe.
Na França não se elege um autor, porém temos Victor Hugo. Desde logo, sinto uma grande admiração por Hugo, porém Hugo não é típicamente francês. Hugo é estrangeiro na França, com este estilo decorativo, com estas vastas metáforas, não é típico da França.
Outro caso ainda mais curioso é o da Espanha. A Espanha poderia ter sido representada por Lope, Calderón, por Quevedo, porém a Espanha é representada por Miguel de Cervantes. Cervantes é um homem contemporâneo da Inquisição, porém é tolerante, é um homem que não tem nem as virtudes nem os vícios espanhóis. É como se cada país pensasse ser representado por alguém diferente dele mesmo, por alguém que possa ser, um pouco, uma espécie de remédio, uma espécie de "triaca" , um antídoto contra seus defeitos.
Nós, os argentinos, poderíamos ter escolhido Facundo de Sarmiento, que é nosso livro, porém não; nós com nossa história militar, nossa história de espada, elegemos como livro a crônica de um desertor, elegemos el Martín Fierro, que bem merece ser eleito como livro. Como pensar que nossa história está representada por um desertor da conquista do deserto? Porém, assim é, como se cada país sentisse esta necessidade. Vários escritores escreveram de modo brilhante sobre os livros. Quero referir-me a uns poucos. Primeiro me concentrarei em Montaigne, que dedica um de seus ensaios ao livro. Neste ensaio tem uma frase memorável: Não faço nada sem alegria. Montaigne mostra que o conceito de leitura obrigatória é um conceito falso. Diz que ao encontrar uma passagem difícil em um livro, deixa-o: porque vê na leitura uma forma de felicidade.
Recordo-me que há muitos anos realizou-se uma pesquisa sobre o que é a pintura. Perguntaram à minha irmã Norah e ela respondeu que a pintura é a arte de mostrar com alegria as formas e as cores. Eu diria que a literatura também é uma forma de alegria. Se lemos alguma coisa com dificuldade, o autor fracassou. Por isto considero que um escritor como Joyce essencialmente fracassou, porque sua obra requer esforço para ser lida. Uma leitura, um livro, não deve demandar esforços pois a felicidade não demanda sacrifícios. Penso que Montaigne está certo. Montaigne enumera os livros de que gosta. Citando Virgílio, ele diz preferir as Geórgicas à Eneida porém isto não é importante. Montaigne fala dos livros com paixão, diz que, embora os livros sejam uma forma de felicidade, são contudo um lânguido prazer.
Emerson o contradiz. Eis um outro grande trabalho sobre o livro. Nesta conferência Emerson diz que uma biblioteca é uma espécie de salão mágico. Neste salão estão presos os melhores espíritos da humanidade, porém esperam nossa palavra para sair de sua mudez. Temos que abrir os livros e então eles despertam. Diz que podemos contar com a companhia dos melhores homens que a humanidade já produziu, porém que os evitamos e preferimos ler comentários e críticas e não o que dizem os originais.
Emerson diz que podemos contar com a companhia dos melhores homens que a humanidade já produziu, porém que os evitamos e preferimos ler comentários e críticas e não o que dizem os originais. Fui professor de literatura inglesa durante vinte anos, na Faculdad de Filosofia y Letras de la Universidad de Buenos Aires. Sempre digo aos meus alunos que tenham pouca bibliografia, que não leiam as críticas, que leiam diretamente os livros. Talvez entendam pouco, porém sempre terão o gozo de ouvir a voz de alguém. Eu diria que o mais importante de um autor é sua entonação, o mais importante de um livro é a voz do autor, esta voz que chega até nós. Dediquei parte de minha vida às letras, e creio que a leitura é uma forma de felicidade. Outra forma de felicidade menor é a criação poética, ou aquilo a que chamamos de criação, que é uma mistura de esquecimento e lembrança do que lemos. Emerson concorda com Montaigne sobre o fato de que devemos ler somente aquilo que nos agrada e que um livro tem que ser uma forma de felicidade. Devemos tanto às letras. Eu procuro mais reler do que ler. Creio que reler é mais importante, embora para se reler seja necessário ter lido uma primeira vez.
Eu tenho este culto ao livro. Posso dizê-lo de um modo tolo e não quero ser tolo, quero que seja uma confidência que faça a cada um de vocês, não a todos, porém a cada um, pois todos é uma abstração e cada um é concreto. Continuo achando que não sou cego pois prossigo comprando livros e enchendo minha casa deles. Outro dia presentearam-me com uma edição de 1966 da Enzyklopadie Brockhaus e eu senti a presença deste livro em minha casa, senti-a como uma forma de felicidade. Ali estavam os vinte e tantos volumes com uma letra gótica que não posso ler, com os mapas e gravuras que não posso ver e, apesar disto, o livro estava ali. Eu o sentia como uma atração amistosa. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade que nós, humanos, temos.
Dizem que o livro desaparecerá, eu creio que é impossível. Perguntam: que diferença pode haver entre um livro e uma revista ou um disco? A diferença é que uma revista é para ser lida e esquecida, um disco se ouve, e mesmo assim, para o esquecimento, é uma coisa mecânica e portanto frívola. Um livro se lê para a memória. O conceito de livro sagrado, do Alcorão, da Bíblia e dos Vedas - onde também se diz que os Vedas criaram o mundo - pode estar ultrapassado, porém o livro tem uma espécie de santidade que devemos cuidar para que não se perca. Pegar um livro e abri-lo guarda a possibilidade do fato estético. Quais são as palavras inseridas no livro? O que são estes símbolos mortos? É simplesmente um cubo de papel e couro, com folhas. Porém se o lermos ocorre uma coisa rara, creio que ele muda a cada momento. Heráclito disse (e tenho repetido isto em demasia) que nada se banha duas vezes no mesmo rio. Nada se baixa duas vezes no mesmo rio porque as águas mudam porém, o mais terrível, é que nós mesmos não somos menos fluídos que um rio.
Cada vez que lemos um livro, o livro se modifica, a conotação das palavras é outra. Além disto, os livros estão carregados de passado. Tenho falado contra a crítica e vou aqui ser contraditório (porém o que me importa ser contraditório). Hamlet não é exatamente o Hamlet que Shakespeare concebeu no início do século 17. Hamlet é o Hamlet de Coleridge, de Goethe e de Bradley. O mesmo se passa com o Quijote. Igual se sucede com Lugones e Martínez Estrada, o Martin Fierro já não é o mesmo. Os leitores acabam enriquecendo o livro. Se lemos um livro antigo, é como se o tivéssemos lido durante todo o tempo transcorrido entre o dia que foi escrito e o nosso tempo. Por isto convém manter o culto ao livro. O livro pode estar cheio de erratas, podemos não concordar com as opiniões do autor, porém ele conserva algo de sagrado, de divino, não de modo supersticioso, mas com o desejo de encontrar a felicidade, de encontrar a sabedoria. Isto é o que queria dizer-lhes hoje.

Buenos Aires, 24/05/1978

Do livro Borges Oral

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

A VILA




O sol eclipsou-se por dois longos dias,
fechando
a vila dentro de portas.
 

© Florbela Ribeiro

( Arte: Adolph Gottlieb, "Black and black")

domingo, 2 de setembro de 2012

A Tarde da Ascensão do Senhor, poema de Carlos Bousoño

A Tarde da Ascensão do Senhor

Tradução de José Bento

Era a luz sobre essa tarde,
última tarde, triste e plena.
Lembro-me bem. Tu ascendias.
Era a luz triste e serena.

Subias doce e amoroso
como enviado da tarde leda,
e a luz serenavas, como um monte
pode serenar a tarde imensa.

O mundo todo era um murmúrio;
suave dor, gemido era.
Ias entre os ventos, delicado,
sob essa primavera.

Lembro-me bem. Uma voz disse:
“Foi claridade sobre a terra.”
E o silêncio invadiu o ar
iluminado de tristeza.

Da terra um menino contemplava
apagar-se no céu tua presença.
Depois olhou os campos, o crepúsculo.
Passava uma ave. Tarde lenta.

in Breve Antologia da Poesia Cristã Universal

Um dos poemas mais belos que já li em minha vida. Há algo de pacífica perfeição aqui.