Páginas

sábado, 21 de julho de 2012

Flusser e a Feira do Efêmero


Ruy Vasconcelos 
- Blog Afetivagem 

Flusser e a Feira do Efêmero
-Flanagem sobre a função do humor, do lúdico e de sobretons de fantasia e barroco em Flusser

O que Flusser pensaria do Twitter? 
Provavelmente nada. Flusser teria deixado a análise do Twitter para os doutores da vez. Ou seja, para aqueles seus contemporâneos que apenas se limitavam a macaquear seus agudos insights e aplicá-los sobre as realidades mais aparentes do aqui e do agora. Ele mesmo estaria mais ocupado com formas de comunicar que ainda nem suspeitamos – e das quais o Twitter, entre outras redes sociais e outras modalidades de passagem de informação em público, não constituiria mais que um indício. Ou seja, um pretérito recente de algo que estaria ainda mal esboçado. Então, somente como esse pretérito recente de algo ainda mal esboçado é que o Twitter entraria em consideração, como elemento acessório, a ser investigado pelo autor da Filosofia da Caixa Preta. Não pelo que constitui em si.
Há algo em Flusser – como aliás em Benjamin – da tradição judaica do profeta. Flusser possuía a nobreza de se reservar assuntos ainda pouco tocados. Mas mesmo quando debruçava-se sobre temas da circunstância, os transfigurava pela força de seu ponto de vista, sempre voltado para a aventura da prospecção. E então, era como se esses assuntos, esses temas fossem vistos com olho de raio-x por entre as espessas muralhas do futuro.
Enquanto os doutos falavam em alienação, nas décadas de 60, 70, 80, enchiam a boca com o termo, com esse conceito - em verdade, tacanho, redutor, bastante problemático e constrangedoramente datado - como para demarcar a contemporaneidade do marxismo que abraçavam ao modo de uma crença, Flusser, ao imaginar coisas improváveis mas possíveis, já buscava lá, adiante, vislumbres do que seria a internet e do que viria a constituir uma sensibilidade pós-industrial.
Na verdade, o que há de novo (e resgate) em Flusser é também um desejo de jogo, de brincadeira. Um desejo de brinquedo que ainda se advinha em gente como Huizinga. Ou em temperamentos menos tutelados, bitolados ou de predisposição menos sectária ou dogmática. E é depois de dimensionar o quanto a máquina deixa muito pouco espaço à criatividade, que Flusser sugere o momento do jogo e da criação. Um jogo limitado pela potência, pela prepotência da tecnologia. Ou pela sofisticação por trás dela, que nos leva a um oximoresco, crescente paroxismo em relação ao fetiche que a anima, que vive embutido nela.¹
Mas, ocorre que, antes de Flusser – e em seguida a Huizinga - a geração dos teóricos de Frankfurt – com a possível exceção de Benjamin e do Kracauer de O Ornamento da Massa – pôs demasiada sisudez e propôs muito pouco jogo, ludo, brincadeira no que mentou. E isso foi absorvido por gente como Habermas, que levou essa sisudez e esse hieratismo acadêmico a uma máxima potência. Ocorre que Habermas, que foi contemporâneo de Flusser, foi também muito mais influente à época e até uns poucos anos atrás, com a sua “teoria da ação comunicativa”.
Hoje, as ações de Habermas na bolsa das teorias conhecem um severo refluxo. O que implica dizer que, dentro de um certo sentido, o “bom-humor” de Flusser é um dado recente, e, no entanto, muito bem-vindo: “imaginar, não coisas impossíveis, mas coisas improváveis, isto é ter fantasia”.
Ora, deter-se feito um basbaque na análise do Twitter não seria do temperamento de Flusser. Ele tinha fantasia. O Twitter não é algo propriamente improvável: é uma realidade, uma forma efetiva de comunicação utilizada por milhões de usuários no mundo inteiro há vários anos. Difícil prognosticar o ponto em que o Twitter atingirá seu zênite para, então, murchar - como já está murchando o Orkut. Mas é certo que ele cessará de disponibilizar sua lógica de teia social tão logo deixe de dar lucro. 
Em dado momento Flusser nos diz que “uma máquina é algo projetado para ludibriar”. Em outro, acerca o artista do trapaceiro; ou a arte do embuste.²
Não se ouve isso de teóricos renomados a todo o instante. Esse grau de jogo e diversão na construção da teoria mesma. Essa linguagem desabusada, informal, cortejando a fala. Essas nomeações, formações de terminologia quando muito tendem ao esoterismo teórico e à seita, como em Deleuze. Mas não ao ludo.
Na contramão disso, os materiais nas mãos de Flusser ainda são estimulantemente toscos, brutos, como nas mãos de uma criança que empresta vida aos bonecos ou ao sabugo de milho de forma jocosamente exemplar. Pois Flusser está sondando, investigando, nomeando fenômenos ainda incipientes – o que o Twitter já não é, em si. O que o Twitter só pode ser na relação com algo que ainda não percebemos, e ainda segue envolto nas dobras do futuro. 
Do mesmo modo, uma criança, por inversão, é incipiente ao investigar qualquer fenômeno. Inclusive o Twitter. Essa é a diferença da criança para Flusser. 
A outra face dessa diferença é a superficialidade. Quer dizer, crianças ao contrário de Flusser, são dispersas. Põem-se a pular de um para outro objeto de investigação. Saltam de um para outro brinquedo, feito estivessem num playground. E acabam não investigando nada mais detidamente. Embora recriem o mundo de um modo mágico e intuitivo, cheio de fantasia e jogo. De uma forma como não sabemos mais fazer depois de adultos. Embora essa forma - intuitiva, lúdica, mágica - quando suprimida também nos deixe num tremendo prejuízo. 
Mas, de outro modo, nós hoje temos uma dimensão prática bem mais efetiva desses fenômenos de comunicação via redes de computador, mediante a universalização da internet e da tecnologia digital – pois era sobre esses fenômenos que o autor de Bodenlos já falava, quando eles apenas brotavam, botavam as manguinhas de fora. E, aqui, é necessário entender que a força do pensamento de Flusser nutre-se também dessa brusquidão, alimenta-se dessa aparente falta de polimento, de jeito.  De estar a farejar algo ainda em processo. E ao contrário do que ocorreu com Benjamin, a recepção de Flusser ainda é por demais recente e escassa para ter se voltado contra ele em potência.³
Isso para não falar que o judeu em Flusser casa muito bem com o improviso brasileiro. Ambos reconhecem-se mais transitórios, prófugos e obrigados a improvisar por força de se encontrarem à margem. E é essa mentalidade brasileira - naturalmente barroca e profusa, impreparada, assistêmica, bastante ahistórica, assimétrica, sensual que se faz notar também como um dado novo no pensamento de Flusser. Sua recusa em citar fontes, por exemplo, passa ao largo de um desejo normativo que engessou o pensamento acadêmico não é de hoje. [4]


___________
¹ daí que para o empacotador de supermercado seja imperativo obter o novo smartphone, que traz a última ninharia técnica: a câmera de x-megapixels, ou a velocidade x.0. E então, ele terá de vender o antigo, quitar a dívida, para poder dar entrada no novo, endividar-se com ele. Sem falar no que há de antisustentável nessa lógica, que aposenta aparelhos, ainda em vida útil, numa velocidade cada vez mais brusca e cujo retorno não é mais que uma milimétrica vantagem técnica que logo será superada por outra. Mas não é essa a lógica de consumo em que já vivemos sendo apenas acelerada?

² de imediato se pode argumentar que o modo como Flusser trata a etimologia de certas palavras-chaves – tais como design, tecnologia e arte – em seu ensaio “Sobre a Palavra Design” é amplamente fantasioso. Mas isso não implica numa diminuição do valor heurístico do ensaio. Pois ele, de outro modo, revela, descobre coisas a partir dessa “fantasia etimológica”. E, indo mais fundo, pode-se indagar: que etimologia não é também fantasiosa e/ou intuitiva?

³ a obra de Benjamin serviu de tema para um tão vasto número de paráfrases teóricas que praticamente desapareceu, afogou-se, submergiu, anulou-se, sumiu em meio ao turbilhão de palavras que a sitiam nos diascorrentes – muitas vezes sem qualquer contexto, coerência, conexão ou mesmo fantasia criativa – dentro das escolas de comunicação, literatura comparada, arquitetura, história, cinema e tradução ao redor do globo. No atacado, não há desdobramentos e descontinuidades a partir de Benjamin, senão um monstruoso catálogo de aberrações teóricas, as quais Benjamin acharia, no mínimo, "curiosas" ou fronteiras à barbárie. Há tantos Benjamins pelo mundo afora, de acordo com o gosto do freguês - um Benjamin semioticista, um Benjamin pós-estruturalista, um Benjamin deleuziano, um Benjamin historiador dos Annales, um Benjamin da desconstrução, um Benjamin das teorias do dispositivo cinemático, um Benjamin feminista e ligado aos estudos culturais; e dentro em breve, quem sabe, até um Benjamin adepto do pós-futebol e da liberação da maconha - que o Benjamin real virou apenas uma pálida sombra indistinguível, e que, convenhamos, ninguém mais lê. Conclusão: Benjamin virou pau para toda obra e, logo, para obra nenhuma. Flusser está apenas começando a experimentar esse processo que Benjamin já passou. Passou, e foi arrasado nele. Esse processo, digamos, de pauperização pelo número. De pauparatodaobralização. Pauperização pelo número e pela inconsistência das paráfrases e desdobramentos teóricos. Com as excepções de praxe, esses desdobramentos não só são ralos, inconsistentes, como também vedam ao próprio estudante as palavras mesmas de Benjamin, seus conceitos. A leitura de seus textos. O acerto ou não das escolhas de seus tradutores. Uma familiaridade maior com sua obra. Mínima que seja. Uma possível conexão entre os conceitos de Benjamin e realidades que hoje experienciamos - em sua maior parte através de maquinismos. Pois são raros os teóricos que, a exemplo de Agamben, concedem um pouco de espaço a Benjamin antes de instrumentalizar a teoria de Benjamin para legitimar a montagem de seu  próprio sistema teórico.
Outro ponto, aliás, que conta a favor de Flusser - além de ainda ser relativamente pouco conhecido - é a estranha sonoridade de seu nome. [um desses nomes que parecem evocar o que Melville nos diz no "Bartleby": "a name which, I admit, I love to repeat for it hath a rounded and orbicular sound to it, and rings like unto bullion". O prefixo flu- é o prefixo do rio e, logo, fluido, fluxo, flúmen, fluência, fluminense etc. O nome Flusser porta em si a transitividade do rio - que é, entre outras, a melhor metáfora de tempo, percurso e circunstância no Ocidente, desde Heráclito].

[4] no caso de Flusser, agregar algo da mentalidade barroca brasileira é um benefício porque consorcia-se a um pensamento que vem a ser, inicialmente, apolíneo, cartesiano, abstrato, geométrico, europeu. Sem muito a oferecer de saída que não sua solidez lógica. E, no caso, o barroco brasileiro tempera esse pensamento. Reveste-o de matizes intuitivas e subversoras da ordem, tal como Bakthin aponta o Carnaval – paroxismo do barroco – como elemento subversor. O problema no Brasil é que ao barroco não há um contraponto mais racional e sóbrio.  [Como houve, de resto, em Flusser]. E logo, o barroco, dando uma volta sobre si mesmo acaba por anular-se. [Pode-se dizer que o barroco dobra-se sobre si mesmo e acomoda-se ao invés de explodir em arco na metade do caminho e vazar para a práxis - incompleto e subversor - a requerer um suplemento mais sóbrio e lógico.] Ou seja, em vez de subverter a ordem, o barroco no Brasil é subvertido por ela, e acaba ajudando a consolidar esse estado de coisas onde impera uma extrema desigualdade social e econômica.  Ora, desigualdade, dessimetria têm tudo a ver com barroco. Senão é mesmo a pérola imperfeita que está na raiz da palavra.

Nenhum comentário:

Postar um comentário