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segunda-feira, 30 de julho de 2012

Regresso a Casa




E se eu implorar (...) que me liberteis,
devereis amarrar-me com mais cordas ainda”
Odisseia


O doce canto desnudando o coração

o desejo nu, bem amarrado ao mastro

Ulisses não podia

atirar às ondas de Sereias

os seus braços.


30/7/2012

© J.T.Parreira

Stalingrado


Stalingrado

1942/43

“Dia angélico e negro”
Giorgos Seferis

Dite
Capital do Inferno
Dite
A capital do Inferno
Dite
Esplendorosa

Dante
Dante mio capitano
Dante toque sua flauta
Para distrair-me enquanto
O médico amputa minhas pernas
Milton, fale-me de teu Deus
Milton my mermaid, dulçor de sereia
Por favor acompanhe a melodia de Dante
Cante contra esta anti-aurora,
cante

Dante, Milton
Ombreiem-me
Deem-me as mãos
Pois não posso mais andar
Tragam-me o cantil de vinho do Porto,
Balas para o fuzil
Comamos e bebamos,
Pois amanhã morreremos

Dite, Cidade das Trevas
Um milhão de mortos
Pavimentando suas ruas

Três cavaleiros cruzam teu perímetro
Se dominasse a língua das metralhas
E do morteiro,
Rogaria um cessar-fogo bem ligeiro

Tenho duas irmãs bonitas
E estamos no dia mais negro
Da mais negra das guerras:
Se eu pudesse
Ofereceria minhas irmãs aos soldados
Para que parassem de disparar
Contra nós, mio capitano
E pudéssemos trafegar livres
Por sobre o roseiral de cadáveres

Camarada Stálin
Já estou morto, então
Não importa:
GRANDE CAMARADA FILHO DE UMA VACA
A culpa disso tudo é tua
Tua lentidão de asno teu fedor de asno

Que o inferno exista
Como existem Dante e Petrarca
E os olhos cegos de Milton
Que você queime em seus nove círculos,
Um século em cada, perfazendo
Um eterno circuito

Queime camarada, arda
Abraçado à tua mãe vaca
E ao Soviete Supremo

Sammis Reachers

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Um Tanka de Jorge Luis Borges

Batalha de Hattin, por Gustave Doré


Não ter tombado,
Como outros de meu sangue,
Na batalha.
Ser na inútil noite
O que conta as sílabas.

Do livro O Ouro dos Tigres

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Os Discípulos de Emaús



















Estavamos sentados. Os olhos

convertidos às suas mãos

quando partia o pão

no escuro

abrindo-nos a luz.


25/7/2012

© J.T.Parreira

domingo, 22 de julho de 2012

Poemas da Guerra de Inverno novo livro de Sammis Reachers



Desde a minha mais tenra infância, a Segunda Guerra Mundial foi o evento histórico que mais me fascinou e, como tal, eu lia e via tudo a respeito. Há algum tempo, tomei a resolução de elaborar uma pequenina antologia de poemas sobre a Segunda Guerra, da lavra de significativos poetas de todo o globo, com a condição de terem sido contemporâneos ao conflito. Ainda que trabalhos correlatos existam em inglês, não são nem um pouco comuns em nosso idioma, e minha ideia é sempre, para usar uma expressão tão marcial, franquear tudo gratuitamente na internet, publicando em formato de e-book.

Ideia puxa ideia, e acabei escrevendo, há algum tempo, uma série de três poemas sobre a Segunda Guerra (A Neve/O Trigo /A Náusea). Pretendia publicá-los com notas explicativas (necessárias para aqueles que desconhecem detalhes do conflito, para facultar a plena compreensão dos fatos citados nos textos) em algum blog. E por fim, pensando em tais notas, me veio a ideia de escrever mais alguns textos assim, ambientados seja na 2° Guerra, seja também em outras guerras ou regiões/períodos conflagrados. E numa mesma semana vieram uns 7 ou 8 poemas... E assim foram emergindo. Somando-se a alguns outros, mais antigos, mas de temática ou roupagem de fundo bélica, eis aqui formado este estranho libreto de poesias tristes...

Os poemas aqui reunidos foram escritos sob a égide existencialista, à sombra ou estranha luz de uma profunda percepção da Queda, e a angústia inolvidável que a condição humana (angústia que numa guerra é holisticamente potencializada ao seu nível máximo – e eis daí meu interesse na guerra máxima) influi em cada uma de suas partes, cada um de nós. Tudo é vaidade, diz o Eclesiastes, tudo é dor, diz Schopenhauer: Cristo é Tudo por ser a única coisa anti-dor que jamais existiu em nossa Realidade pós-Queda - do Absurdo o escape, Porta e Única Porta para devolver ao homem/Universo o estado de Graça primordial.

O pano de fundo aqui, como dito, é a Guerra, diluída narrativamente em diversas (no tempo e no espaço) guerras já travadas; a grande maioria dos poemas fala na primeira pessoa, e a persona é o soldado, ou melhor, o soldado-vítima, pois o que combate em meio a tanta dor, retroalimentando-a, é ele próprio as primícias das vítimas do caos. Um dos títulos para esta pequena série de poemas seria mesmo Poemas de Soldados Mortos, mas declinei, pois nem todos conseguem aqui escapar pela morte. Datas e locais foram afixados na maioria dos poemas; mas fora os três primeiros textos que abrem o livro, evitei estender-me em notas explicativas sobre os demais. Sei que seriam necessárias. Mas afinal este é um livro eletrônico, e tem-se sempre ao alcance dos dedos a Wikipédia, e tudo o mais que o Google pode oferecer.

Dividi o livro em duas partes, Omnia Funera (‘Todas as Mortes’), com os poemas ambientados na Segunda Guerra; e Omnia Fragmenta (‘Todos os Fragmentos’), com os demais textos. Nestes, estamos num momento encurralados em Diu, a fortaleza portuguesa encravada durante séculos na Índia; somos em seguida um samurai ferido numa fortaleza em chamas do Japão feudal, absorto entre ser ou não ser; caímos numa estrebaria imunda na imunda Guerra do Paraguai, ou escapamos do Vietnã durante a Queda de Saigon (ou a Libertação, pois como qualquer poema, depende tudo do coração de quem lê); somos um cão humano marchando para a corte de Luís XVI, ou um soldado solitário de Esparta a profetizar sobre coisas que desconhece... 

Leia o livro online, clicando AQUI.

Para baixar o livro em formato PDF, clique AQUI.


sábado, 21 de julho de 2012

Flusser e a Feira do Efêmero


Ruy Vasconcelos 
- Blog Afetivagem 

Flusser e a Feira do Efêmero
-Flanagem sobre a função do humor, do lúdico e de sobretons de fantasia e barroco em Flusser

O que Flusser pensaria do Twitter? 
Provavelmente nada. Flusser teria deixado a análise do Twitter para os doutores da vez. Ou seja, para aqueles seus contemporâneos que apenas se limitavam a macaquear seus agudos insights e aplicá-los sobre as realidades mais aparentes do aqui e do agora. Ele mesmo estaria mais ocupado com formas de comunicar que ainda nem suspeitamos – e das quais o Twitter, entre outras redes sociais e outras modalidades de passagem de informação em público, não constituiria mais que um indício. Ou seja, um pretérito recente de algo que estaria ainda mal esboçado. Então, somente como esse pretérito recente de algo ainda mal esboçado é que o Twitter entraria em consideração, como elemento acessório, a ser investigado pelo autor da Filosofia da Caixa Preta. Não pelo que constitui em si.
Há algo em Flusser – como aliás em Benjamin – da tradição judaica do profeta. Flusser possuía a nobreza de se reservar assuntos ainda pouco tocados. Mas mesmo quando debruçava-se sobre temas da circunstância, os transfigurava pela força de seu ponto de vista, sempre voltado para a aventura da prospecção. E então, era como se esses assuntos, esses temas fossem vistos com olho de raio-x por entre as espessas muralhas do futuro.
Enquanto os doutos falavam em alienação, nas décadas de 60, 70, 80, enchiam a boca com o termo, com esse conceito - em verdade, tacanho, redutor, bastante problemático e constrangedoramente datado - como para demarcar a contemporaneidade do marxismo que abraçavam ao modo de uma crença, Flusser, ao imaginar coisas improváveis mas possíveis, já buscava lá, adiante, vislumbres do que seria a internet e do que viria a constituir uma sensibilidade pós-industrial.
Na verdade, o que há de novo (e resgate) em Flusser é também um desejo de jogo, de brincadeira. Um desejo de brinquedo que ainda se advinha em gente como Huizinga. Ou em temperamentos menos tutelados, bitolados ou de predisposição menos sectária ou dogmática. E é depois de dimensionar o quanto a máquina deixa muito pouco espaço à criatividade, que Flusser sugere o momento do jogo e da criação. Um jogo limitado pela potência, pela prepotência da tecnologia. Ou pela sofisticação por trás dela, que nos leva a um oximoresco, crescente paroxismo em relação ao fetiche que a anima, que vive embutido nela.¹
Mas, ocorre que, antes de Flusser – e em seguida a Huizinga - a geração dos teóricos de Frankfurt – com a possível exceção de Benjamin e do Kracauer de O Ornamento da Massa – pôs demasiada sisudez e propôs muito pouco jogo, ludo, brincadeira no que mentou. E isso foi absorvido por gente como Habermas, que levou essa sisudez e esse hieratismo acadêmico a uma máxima potência. Ocorre que Habermas, que foi contemporâneo de Flusser, foi também muito mais influente à época e até uns poucos anos atrás, com a sua “teoria da ação comunicativa”.
Hoje, as ações de Habermas na bolsa das teorias conhecem um severo refluxo. O que implica dizer que, dentro de um certo sentido, o “bom-humor” de Flusser é um dado recente, e, no entanto, muito bem-vindo: “imaginar, não coisas impossíveis, mas coisas improváveis, isto é ter fantasia”.
Ora, deter-se feito um basbaque na análise do Twitter não seria do temperamento de Flusser. Ele tinha fantasia. O Twitter não é algo propriamente improvável: é uma realidade, uma forma efetiva de comunicação utilizada por milhões de usuários no mundo inteiro há vários anos. Difícil prognosticar o ponto em que o Twitter atingirá seu zênite para, então, murchar - como já está murchando o Orkut. Mas é certo que ele cessará de disponibilizar sua lógica de teia social tão logo deixe de dar lucro. 
Em dado momento Flusser nos diz que “uma máquina é algo projetado para ludibriar”. Em outro, acerca o artista do trapaceiro; ou a arte do embuste.²
Não se ouve isso de teóricos renomados a todo o instante. Esse grau de jogo e diversão na construção da teoria mesma. Essa linguagem desabusada, informal, cortejando a fala. Essas nomeações, formações de terminologia quando muito tendem ao esoterismo teórico e à seita, como em Deleuze. Mas não ao ludo.
Na contramão disso, os materiais nas mãos de Flusser ainda são estimulantemente toscos, brutos, como nas mãos de uma criança que empresta vida aos bonecos ou ao sabugo de milho de forma jocosamente exemplar. Pois Flusser está sondando, investigando, nomeando fenômenos ainda incipientes – o que o Twitter já não é, em si. O que o Twitter só pode ser na relação com algo que ainda não percebemos, e ainda segue envolto nas dobras do futuro. 
Do mesmo modo, uma criança, por inversão, é incipiente ao investigar qualquer fenômeno. Inclusive o Twitter. Essa é a diferença da criança para Flusser. 
A outra face dessa diferença é a superficialidade. Quer dizer, crianças ao contrário de Flusser, são dispersas. Põem-se a pular de um para outro objeto de investigação. Saltam de um para outro brinquedo, feito estivessem num playground. E acabam não investigando nada mais detidamente. Embora recriem o mundo de um modo mágico e intuitivo, cheio de fantasia e jogo. De uma forma como não sabemos mais fazer depois de adultos. Embora essa forma - intuitiva, lúdica, mágica - quando suprimida também nos deixe num tremendo prejuízo. 
Mas, de outro modo, nós hoje temos uma dimensão prática bem mais efetiva desses fenômenos de comunicação via redes de computador, mediante a universalização da internet e da tecnologia digital – pois era sobre esses fenômenos que o autor de Bodenlos já falava, quando eles apenas brotavam, botavam as manguinhas de fora. E, aqui, é necessário entender que a força do pensamento de Flusser nutre-se também dessa brusquidão, alimenta-se dessa aparente falta de polimento, de jeito.  De estar a farejar algo ainda em processo. E ao contrário do que ocorreu com Benjamin, a recepção de Flusser ainda é por demais recente e escassa para ter se voltado contra ele em potência.³
Isso para não falar que o judeu em Flusser casa muito bem com o improviso brasileiro. Ambos reconhecem-se mais transitórios, prófugos e obrigados a improvisar por força de se encontrarem à margem. E é essa mentalidade brasileira - naturalmente barroca e profusa, impreparada, assistêmica, bastante ahistórica, assimétrica, sensual que se faz notar também como um dado novo no pensamento de Flusser. Sua recusa em citar fontes, por exemplo, passa ao largo de um desejo normativo que engessou o pensamento acadêmico não é de hoje. [4]


___________
¹ daí que para o empacotador de supermercado seja imperativo obter o novo smartphone, que traz a última ninharia técnica: a câmera de x-megapixels, ou a velocidade x.0. E então, ele terá de vender o antigo, quitar a dívida, para poder dar entrada no novo, endividar-se com ele. Sem falar no que há de antisustentável nessa lógica, que aposenta aparelhos, ainda em vida útil, numa velocidade cada vez mais brusca e cujo retorno não é mais que uma milimétrica vantagem técnica que logo será superada por outra. Mas não é essa a lógica de consumo em que já vivemos sendo apenas acelerada?

² de imediato se pode argumentar que o modo como Flusser trata a etimologia de certas palavras-chaves – tais como design, tecnologia e arte – em seu ensaio “Sobre a Palavra Design” é amplamente fantasioso. Mas isso não implica numa diminuição do valor heurístico do ensaio. Pois ele, de outro modo, revela, descobre coisas a partir dessa “fantasia etimológica”. E, indo mais fundo, pode-se indagar: que etimologia não é também fantasiosa e/ou intuitiva?

³ a obra de Benjamin serviu de tema para um tão vasto número de paráfrases teóricas que praticamente desapareceu, afogou-se, submergiu, anulou-se, sumiu em meio ao turbilhão de palavras que a sitiam nos diascorrentes – muitas vezes sem qualquer contexto, coerência, conexão ou mesmo fantasia criativa – dentro das escolas de comunicação, literatura comparada, arquitetura, história, cinema e tradução ao redor do globo. No atacado, não há desdobramentos e descontinuidades a partir de Benjamin, senão um monstruoso catálogo de aberrações teóricas, as quais Benjamin acharia, no mínimo, "curiosas" ou fronteiras à barbárie. Há tantos Benjamins pelo mundo afora, de acordo com o gosto do freguês - um Benjamin semioticista, um Benjamin pós-estruturalista, um Benjamin deleuziano, um Benjamin historiador dos Annales, um Benjamin da desconstrução, um Benjamin das teorias do dispositivo cinemático, um Benjamin feminista e ligado aos estudos culturais; e dentro em breve, quem sabe, até um Benjamin adepto do pós-futebol e da liberação da maconha - que o Benjamin real virou apenas uma pálida sombra indistinguível, e que, convenhamos, ninguém mais lê. Conclusão: Benjamin virou pau para toda obra e, logo, para obra nenhuma. Flusser está apenas começando a experimentar esse processo que Benjamin já passou. Passou, e foi arrasado nele. Esse processo, digamos, de pauperização pelo número. De pauparatodaobralização. Pauperização pelo número e pela inconsistência das paráfrases e desdobramentos teóricos. Com as excepções de praxe, esses desdobramentos não só são ralos, inconsistentes, como também vedam ao próprio estudante as palavras mesmas de Benjamin, seus conceitos. A leitura de seus textos. O acerto ou não das escolhas de seus tradutores. Uma familiaridade maior com sua obra. Mínima que seja. Uma possível conexão entre os conceitos de Benjamin e realidades que hoje experienciamos - em sua maior parte através de maquinismos. Pois são raros os teóricos que, a exemplo de Agamben, concedem um pouco de espaço a Benjamin antes de instrumentalizar a teoria de Benjamin para legitimar a montagem de seu  próprio sistema teórico.
Outro ponto, aliás, que conta a favor de Flusser - além de ainda ser relativamente pouco conhecido - é a estranha sonoridade de seu nome. [um desses nomes que parecem evocar o que Melville nos diz no "Bartleby": "a name which, I admit, I love to repeat for it hath a rounded and orbicular sound to it, and rings like unto bullion". O prefixo flu- é o prefixo do rio e, logo, fluido, fluxo, flúmen, fluência, fluminense etc. O nome Flusser porta em si a transitividade do rio - que é, entre outras, a melhor metáfora de tempo, percurso e circunstância no Ocidente, desde Heráclito].

[4] no caso de Flusser, agregar algo da mentalidade barroca brasileira é um benefício porque consorcia-se a um pensamento que vem a ser, inicialmente, apolíneo, cartesiano, abstrato, geométrico, europeu. Sem muito a oferecer de saída que não sua solidez lógica. E, no caso, o barroco brasileiro tempera esse pensamento. Reveste-o de matizes intuitivas e subversoras da ordem, tal como Bakthin aponta o Carnaval – paroxismo do barroco – como elemento subversor. O problema no Brasil é que ao barroco não há um contraponto mais racional e sóbrio.  [Como houve, de resto, em Flusser]. E logo, o barroco, dando uma volta sobre si mesmo acaba por anular-se. [Pode-se dizer que o barroco dobra-se sobre si mesmo e acomoda-se ao invés de explodir em arco na metade do caminho e vazar para a práxis - incompleto e subversor - a requerer um suplemento mais sóbrio e lógico.] Ou seja, em vez de subverter a ordem, o barroco no Brasil é subvertido por ela, e acaba ajudando a consolidar esse estado de coisas onde impera uma extrema desigualdade social e econômica.  Ora, desigualdade, dessimetria têm tudo a ver com barroco. Senão é mesmo a pérola imperfeita que está na raiz da palavra.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

FLOR

“A morte é uma flor que se abre uma só vez”
Paul Celan, “A morte”

Há mortes que são flores
que brotam onde querem
e preenchem de cor e aroma a casa
há mortes que no íntimo do chão
se dão em flores
que nas ondas no mar
lavram navios inteiros

há mortes que são aroma e cor
que surpreendem os próprios caules
e decompõem as espadas
quando todos pronunciavam o fim da alegria
cuja corola de uma só abertura
nos derrama água
sobre as mãos e o rosto

Rui Miguel Duarte
21/07/12

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Encontro com James Joyce em Zurique




Perdoa-me, Ezra Pound, que imperturbável
te receba
o meu jardim estiola sobre um epitáfio

lavrado no chão e estou cansado
desta morte
na forma de liga de metal
perdoa-me que olhe para ti
pela cegueira do infinito
Vieste visitar-me, meu velho poeta
meu filho crescido
no bolso do sobretudo é bom que tragas
para desvendar os Cantos de Pisa
os instrumentos para o meu Leopold Bloom
esse homem vacilante do Ulysses
aprender a tua firme sabedoria
Perdoa-me Ezra, que não me levante
mesmo que os meus olhos não consigam
apanhar o teu tão alto tamanho.

16/7/2012


© J.T.Parreira

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Extensão dos Lábios, novo livro de Rui Miguel Duarte


Depois de Muta uox e Subida (ambos de 2011), eis que o poeta evangélico lusitano Rui Miguel Duarte acaba de nos brindar com seu novo livro, Extensão dos Lábios, agora em formato de e-book, franqueando aos leitores a leitura online ou o download gratuito do mesmo. 

A riqueza imagética e reflexiva da poesia de Rui, sua habilidade de transitar com leveza das temáticas cristãs às clássicas, passando pela poesia do cotidiano, somadas ao seu perfeito domínio das linguagens vernacular epoiética, estão aqui regiamente representadas, nas 67 páginas deste livro, que tivemos o prazer de editar.

Como diz o poeta J.T.Parreira no prefácio da obra, "A extensão dos lábios é, de um modo simbólico – neste novo livro de Rui Miguel Duarte - uma disposição para abarcar vários referentes, para falar várias linguagens poéticas. Com efeito, a linguagem poética do autor, estende-se a diversos territórios, cujos registos narrativos da sua poesia podem tanger vários continentes."

Você pode baixar o e-book clicando AQUI.

E para ler o livro online, basta clicar AQUI.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

NAUMAQUIA

o sangue reverdece
depois da naumaquia
depois de terçar as lâminas
com os monstros marinhos
que se dissimulam dentro das proas
dentro dos cestos de gávea que são os ventos
que o inimigo lança em ataque louco e desesperado
e subtilmente passa sob os nossos pés rasos nas águas
aqui soletramos as areias infiltradas nos destroços
e aprendemos a contar quantas foram as naus
é então que o sangue reverdece

Rui Miguel Duarte
12/07/12

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Dois poemas de Florbela Ribeiro

SENTIR

Escrevo a razão do sentimento
no silêncio
e com o coração
se acaso perguntares: terá o sentimento razão
em se exprimir?
responder-te-ei: às vezes sim, às vezes não
porém as silabas que decalco
na lisura do papel não contemplam
a robustez prolongada
do meu sentir



QUERO

Quero exalar o esplendor do olhar
sobre ti
guiar os teus passos
a cada marco da estrada
e remover dos teus ombros
a canseira
com a ágil nobreza dos meus dedos
quero transportar a segurança
ao teu destino
retirar os percalços da memória
derrubar muralhas
arrancar-te das neblinas
solitárias
e beijar com doçura a tua história


© Florbela Ribeiro


terça-feira, 10 de julho de 2012

MAIS ALTO


Deus separou-o dos pecadores e elevou-o ao mais alto dos céus.
Hebreus 7:26
  
Acima dos mantos de cristal
e dos faróis ateados das galáxias  
acima das extensões do infinito
das noites claras de pássaros
em deslumbramento

nem as nuvens
cobrem mais o puro deserto
do meio dia e nos aliviam
a caminhada do sol
sobre o dorso

nem mais alto ascende a súplica
dos que o chamam pelo nome
e o aprendem a conhecer
pela alegria azul
que desce do céu
— e nele se mostra como rosto

Rui Miguel Duarte
7/07/12

segunda-feira, 9 de julho de 2012

A mão na minha cabeça








Mãe
quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!"
Almada Negreiros


Quando me vês chegar à tua casa
através de uma névoa
que jamais fez com que os teus olhos não
fossem o amor, dizes
és tu, o meu filhinho, joanito
e repartes os meus dedos
nas tuas mãos
e eu recupero a saúde e sinto
que a morte ficou à porta
e que os meus calções amarrotados
jamais ficaram gastos
e que a infância, lá tão longe
é ainda um jardim que podemos cultivar.

9/7/2012

© J.T.Parreira

sábado, 7 de julho de 2012

FUGA

“Mas Jonas decidiu fugir para longe de Deus”
Jonas 1:3

vou-me embora
pesa-me Nínive esmaga-me Jerusalém
com a Lua me vou por onde ela
se decompuser no mar

vou-me, esperando que o vento
esbarronde nas pedras a voz de Deus
e me dê asas me faça irmão dos arcanjos

vou-me embora,
para as margens do Sol
não é Társis mais que um porto de passagem
o porto de ancoragem passa as Hespérides
lá mora o que eu espero
para lá do fim do mundo de todas as esferas

chegar é partir alcançar é ir embora
não há vento que me baste
chuvas que me revertam a sede
ondas que sustenham o navio no silêncio

não suporto
o peso de Nínive
e o esmagamento de Jerusalém
e já tarda
vou-me embora

Rui Miguel Duarte
5/07/12

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Vou me embora




Há por acaso alguma nova Tróia para incendiar?
É preciso movermo-nos na imaginação
que, tal como as pernas, está a ficar mármore
Haverá alguma coluna ainda ou algum arco a abater
para o futuro, para render o olhar
abismado sobre Roma?
Então nada a fazer
vou-me embora
para a pequena aldeia onde o vento
passe plácido como um regato verde
no pináculo dos pinheiros.

5/7/2012


©  J.T.Parreira

quarta-feira, 4 de julho de 2012

DA INSPIRAÇÃO POÉTICA

Texto de aula de Oficina de Poesia na UNISETI (Universidade Sénior de Setúbal) 20/06/12


ϛοῖδα δ᾽ὀρνίχων νόνως
πάντων
“Conheço as melodias de todas
as aves"
Álcman de Sardes (séc. VII a.C.), frg. 40 D. L. Page


UM MANIFESTO

O fragmento citado, do poeta grego Álcman dá do poeta o retrato de um perscrutador. Atento, com coração de aluno, ou profeta que recebe palavra, revelação de mistério e oráculo de outrem e é deles intermediário, o que fazer. Artista, que aprende com outrem como fazer. E marco bem o verbo fazer, visto que poesia, na origem grega, significa realização de uma obra, ou o produto dessa realização. Em grego, poiesis é a realização; poema, donde “poema”, é o produto, a obra; e o verbo poiéo, o acto ou efeito de fazer algo. Na língua helénica, esta família de palavras não se restringia em exclusivo à criação poética, mas a tudo. Fazer algo: na poesia, na arte, em tudo. O apóstolo Paulo, na sua carta à igreja de Éfeso (Paulo, Carta aos Efésios 2:10) diz que, quem se une a Jesus Cristo, é uma obra divina, um poiema.
Centenas, para não dizer milhares de poetas e teorizadores e críticos literários, de todas as épocas e lugares, reflectiram e escreveram sobre a inspiração poética, sobre o que é ser poeta. Não acrescentarei nada a esse debate. Até porque um poeta prefere a função poética da linguagem (nos termos da teoria de Jakobson) à metalinguística, a escrever poesia a pensar e escrever porque escreve poesia e o que é poesia. Tão-somente falarei da minha experiência, da intimidade da minha alma enquanto (pequeno) poeta. Da criação e de temáticas, de motivações e recorrências deste poeta. Ilustrarei com poemas o que procuro dizer-vos. Em suma, este poeta falará de si próprio e da sua própria poesia. Como testemunhos, poemas insertos especialmente nos dois volumes publicados (Muta uox e Subida).
Falar sobre si próprio é, para um poeta (pelo menos para este), como que um exercício de narcisismo. Não que o poeta não pense, não pense, mas normalmente esses pensamentos ficam para si próprio; quando se revela aos outros, é em novos poemas. E ao fazê-lo induz obviamente linhas de sentido, que partem da situação que motivou o poema, das imagens, símbolos, palavras, jogos de linguagem e propósitos e efeitos pretendidos no leitor. E pode com isto substituir-se ao leitor, o que se não deseja. Que outros falassem. Mas procurarei simplesmente abrir portas, franquear postigos e janelas, apenas isso, de modo que os leitores entrem.
Escreve António Ramos Rosa, a propósito das fontes da inspiração poética:
“Se no intervalo das palavras se pode ouvir o silêncio dos campos como se o poema fosse um harmónio côncavo é a inversão do mundo num silêncio e não o mundo e a atenção sem objecto entre o interior e o exterior do poema.”
E um pouco este “intervalo das palavras” em que se pode ouvir “o silêncio dos campos”, que este o poeta busca, como a impressão do mundo em negativo, nesse espaço, sempre indefinido mas ténue, entre o interior e o exterior em côncavo. É aí, nessa película de silêncio, que se inscreve a poesia.


INSPIRAÇÃO, EXPIRAÇÃO

Em primeiro, título desta lição: o vocábulo inspiração remete para a fonte, aquilo que motiva e gera a poesia. É uma questão batida. É bem conhecida a máxima “dez por cento de inspiração e noventa de transpiração”. Nela, consigna-se à inspiração propriamente dita (como ideia, frase ou palavra espirituosa que nos chega à mente e se torna o ponto de partida e o próprio sistema circulatório que dá vida ao poema, o seu ADN) um papel quase residual. Atribui-se a Paul Valéry a confissão segundo a qual o primeiro verso nos é dado. Como uma bênção, uma dádiva, a tal inspiração, se quisermos; o resto tem o poeta de procurar. Escreve Júlio Saraiva, jornalista e poeta em S. Paulo, o seguinte testemunho a propósito da poesia de J. T. Parreira: “nunca acreditei em inspiração - em talento e trabalho, sim. leio sua alta e elaboradíssima poesia, encantado, como quem bebe o ar de um dia feliz."
A posição deste poeta estriba-se, desde logo, na própria etimologia de poesia. Poesia é fazer, construir, elaborar. Pessoalmente, entendo e experimento que por vezes o tal primeiro verso me é dado. Por vezes, há só isso, nem, digamos, o tema, a ideia, imagem, motivação e impressão nuclear. Mas o resto, é ainda o branco vazio; o resto tem de ser mesmo construído. E é-o numa luta comigo próprio e com as palavras, com aquilo que elas me exigem e me permitem, e com o que eu lhes exijo e permito. Procurar, explorar a história a contar, a imagem, a metáfora, o voo da frase, a palavra certa. A qual, não raro, me toma pela certa, e me ultrapassa e se impõe.
Leio um poema (inédito), um exemplo, em que o poeta busca a própria inspiração, a matéria, o que dizer, que viaja à descoberta, e que anseia por ser total, completo, integrador:

DA MATÉRIA DO POEMA

“Subi ao alto, à minha Torre esguia,
Feita de fumo, névoas e luar”
Florbela Espanca, “Torre de névoa”

o meu poema não habita
em torres de névoa não há espera matinal
por D. Sebastião
morreram todos eles para sempre
e os seus corpos  secaram
nos dentes dos chacais
em Alcácer-Quibir
no meu poema não ardem baixo os luares
sobre as águas

no meu poema há só o sol a prumo

não há Ítacas, Társis nem Índias
de fuga ou nostalgia
há a amplidão nítida dos rios
que duma mão nascem e na outra desaguam

no meu poema há a outra margem
uma terra toda inteira
ainda sem nome nem padrão
de descoberta

30/09/11


POETA CRIADOR

As primeiras palavras da Bíblia (Génesis 1:1) referem a actividade criadora de Deus, como súmula, que o escritor discrimina nesse primeiro capítulo e no seguinte: o que criou, como criou, por que ordem, e a relação que estabeleceu com a sua obra. No cap. 1 vv. 26 e 27 diz uma coisa extraordinária acerca do homem: que é sua imagem e semelhança. Muito se tem discutido sobre o sentido deste atributo do homem. Há trinta e quatro anos, a 25 de Maio de 1978, em Portugal, um grupo de cristãos evangélicos (composto por António, Luís Horta, João Tomaz Parreira, Jorge Pinheiro, Brissos Lino, Samuel R. Pinheiro) iniciaram um movimento cultural (corporizada na Associação Bara e responsável por uma revista), que se reclamava desta mesma declaração; o credo deste grupo baseava-se nas premissas de que se Deus é criador, e se o homem é usa imagem e semelhança, então o ímpeto criador é parte dessa imagem e semelhança, e o homem, com maioria de razão o cristão, ao criar honra o seu Deus, e cria precisamente em devoção ao seu culto e como forma de o adorar. Isto atingiria as variadas expressões artísticas: poesia, pintura, música, etc..
Assim entende este poeta. Se na poesia tudo cabe (o quotidiano, o belo horrível de Baudelaire, ou o dirty realisms norte-americano, o sublime e o elementar), cabe também a religião, a relação do homem com Deus, os motivos bíblicos. E acrescenta, a título de manifesto: o poeta, como criador que se entende deve ser, não apenas adora o Deus em que crê, como também cumpre em estreita colaboração e por inspiração dele o que crê ser a sua missão, dele recebida. O poeta como vate, como profeta? Não apenas, se profeta é um intermediário de palavras de outrem e lhes empresta a voz; também como criador de mundos pela palavra, feito de palavra, e o autor da palavra. Ouça-se este “Evolução das espécies”, em evocação da teoria da evolução de Darwin, mas com a declaração do único que há em que cada ser, assim como em poeima, em cada obra (biológica e poética). Nele, o poeta participa das mesmas faculdades, cumprindo por delegação essa atribuição divina:

EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES (in Subida p. 23)

Depois Deus disse: «Que a terra produza toda a espécie de seres vivos: animais domésticos, animais selvagens e todos os bichos, conforme as suas diferentes espécies.» E assim aconteceu.»”

Génesis 1:24

Não há evolução das espécies

Não o digas ao poeta
de olhar pendurado da dor da aurora
e da expectação de um voo de pássaro

ele dir-te-á
que o poema é filho
da sua uranografia
enteado do temor de que
o seu coração ganhe asas
e se volatilize, porque é no peito
que ele é dado à luz

como se fosse
o último e o único
na sua espécie e género
como única e última
é a dor
cada dor que lhe espinha a carne

Não há evolução das espécies
cada uma é gerada da boca do poeta

digna de ser aclamada
por uma nova e última e única
salva de palmas

18/06/10

Ou este, que tem como mote um verso de Carlos Drummond de Andrade:

DA ORIGEM DO POEMA (Subida p. 60)

“E a flauta, sem nada mais que puro som”
  Carlos Drummond de Andrade
           
           
Não precisa de ser complicado
o poema, de te beber a linfa
no labor de o interpretar

não tem de ter razões
nem de as não ter

o poema não é um inimigo
que te dá punhadas no peito
e te consome as forças
e te descasca a coração
até não dispores de nada mais
senão fragmentos de palavras
cacos de ideias, e as tuas emoções
te tenham sido secadas
como a terra que ficou ressequida

o poema não te pergunta semântica
nem te ensina gramática
nem te exige conhecimentos de retórica

o poema só precisa
que uma flauta toque
que a pura substância do som
encarne o sonho, e a tua voz
se solte uma e outra vez
e molde o mundo

31/12/10


INDAGADOR

O poeta é um indagador. Com esta palavra, a indagação, procuro condensar um sem-número de sentimentos, emoções, pensamentos, hesitações, questionamentos, disposições atentas aos outros e às coisas que o circundam. Indagação requer inquietação, atenção, disposição para escutar e ver.
Essa indagação pode vir do diálogo com outros poemas e poetas. Será aqui talvez que o poeta é mais lírico, com um eu poético presente e que tudo organiza, se manifesta e faz manifestar o poema, que nele sente e pensa, autopoético (por analogia com o termo autodiegético, em que o narrador é o próprio protagonista, aquele que vive e conta a diegese). 
Um exemplo, a propósito da contemplação do espectáculo de cisnes:

OS CISNES (Subida p. 22)

Os cisnes, que nadam na regularidade
cerúlea das águas,
vêm habitar
no intervalo cego
entre os meus olhos

ao passarem de um lado
para o outro
de cada banda do lago
há momentos em que deixo de os ver
— terão levantado um breve voo
ou ter-se-ão liquefeito
no líquido manto?

12/06/10

Neste outro poema, intitulado “Depois”, um poema que se pode dizer, em parte, de amor, o poeta procura algo mais no fim, após o esgotamento de tudo (palavras, emoções…). É a indagação, a perscrutação, com uma intuição e uma impressão de que há sempre inesgotavelmente algo mais:

DEPOIS (Subida p. 44)

Haverá ainda muitas coisas
por dizer
depois, meu amor,
do amarelecer das folhas

a neve ainda nos cobrirá
como um capuz os cabelos
tudo o que do céu houver por cair
e da terra por subir

o fogo do vulcões ainda nos beijará
os flancos, pelas mãos correrá
o fio da areia das nuvens translúcidas
que o nosso canto
deixa ao se extinguir

mesmo então,
depois que à noite tirarmos o véu
e lhe desvendarmos a frescura,
essa frescura que bate nas vidraças
e nos molda a pele à faca,
mesmo então

depois de a voz nos trair
e a penumbra nos engelhar
os dedos no enlace, e os frutos morrerem
como os sonhos pelo chão

haverá muitas coisas
por dizer ainda por dizer

26/09/10

Os versos em epígrafe de Álcman forneceram ao poeta a epígrafe para uma outra reflexão sobre a condição de poeta, como ser à escuta, em busca de inspiração. É o poeta vate, profeta, depositário de segredos das coisas e que estabelece com outros seres, e coisas, uma relação de simbiose. Intitula-se precisamente “Simbiose”.

SIMBIOSE (Subida p. 56)

ϛοἶδα δ᾽ὀρνίχων νόνως
πάντων
“Conheço as melodias de todas
as aves"

Álcman de Sardes frg. 40 D. L. Page

De quantas aves há
aprendi o canto e adestrei-me
a compor e recompor
a melodia

de todos as notas e harpejos
recebi a ciência
dos acentos secretos
do timbre e do tom do voo

eles ondulam e palpitam,
mas de repente
soltam e saltam
da pauta do coração
para as cordas da voz
do poeta

19/12/10


POESIA DE JÚBILO

O poete tem anseios, mas também aspirações a conter em si sensações, vida, o desejo de vida, de ascensão. A vontade de superação, a busca da de plenitude (u.g. “Da matéria do poema”).
O poete tem anseios, mas também aspirações a conter em si sensações, vida, o desejo de vida, de ascensão. A vontade de superação, a busca da de plenitude (u.g. “Da matéria do poema”). O próprio título do livro (Subida) o sugere, e como é explicado na sinopse na contracapa: subida, ascensão tanto espiritual como poética.
Esta poesia, a despeito de invocar dor e provações, é de júbilo, e de esperança. Há angústias, mas estas são passageiras, são próprias do caminho que se faz na vida, não o seu termo. A corrida para o alvo (lembro das palavras do apóstolo Paulo na carta aos Filipenses 3:14). Por que razão há-de ser o poeta um ser macambúzio, deprimido, suicida? O poeta crê que o poeta, e a poesia, pode ser de esperança, de restauração, de vigor, de superação. A fé cristã do poeta, assente no Cristo Jesus ressuscitado, e nas promessas dadas a quem crê neste Cristo, não é alheia a essa postura, que é uma decisão e determinação. Para si próprio, e como mensagem profética (de encorajamento) para os outros. Oiçamos um poema:

CORAÇÃO LEVE (Subida p. 50)

Procuro um coração leve
que se deixe abraçar por uma criança
numa brisa de água pura
numa curva larga para os volteios da dança

ter-se-á volatilizado, com as marés
partido para outro país, habitado de magos e reis?
que coração que nada pese, nem o chão nem uma toca
que seja translúcida alegria, alheio a normas e a leis

um coração com a certeza de um fruto
no extremo estreito da árvore, certo no tempo certo
como chuva que não tarda, que vence o vento
ou um hieróglifo batido no ouro do deserto

procuro um coração leve
que se deixe encantar pelo canto de uma criança
numa ilusão que recria, que ganha osso e carne,
no zénite total das ondulações da esperança

22/11/10

Em outro poema expressa-se claramente esse anseios de superação:


NEM SÓ (Subida p. 72)


Οὐκ ἐπ’ ἄρτῳ μόνῳ ζήσεται ὁ ἄνθρωπος, ἀλλ’ ἐπὶ παντὶ ῥήματι ἐκπορευομένῳ διὰ στόματος θεοῦ
“Não se vive só de pão, mas também de toda a palavra que vem de Deus”

Evangelho segundo Mateus 4:4

nem só de pão
do que os dentes arrebatam
à fome vivemos
há também as palavras

nem só de fandangos da noite
de vigílias quebradas nas mãos cheias
mas também dos silêncios
dos olhos que se perdem e rendem

nem só de paixão se faz a canção
faz-se de flores de pedra
e risos de dor faz-se enfim
sempre de palavras antigas
que nos vêm inteiras da boca de Deus
reditas em sempre
novas sílabas

28/03/11

A vida, a sua canção e o seu poema, fazem-se de pão, como no texto bíblico. Mas também de outras coisas, de dores e silêncios, de contradições. Mas há mais: há a redenção, e esta pela Palavra divina. E assim se adquire nova vida e novo poema.
E um outro gostaria de citar, de superação, para lá da quebra dos limites que na vida se nos deparam, findo o teatro desta:

AO CAIR DO PANO (Subida p. 70)

Seremos felizes, meu amor,
ao cair do pano
quando as gotas da chuva
ocultarem os olhos
às máscaras do mundo

ao despirmos o colo
da morte das palavras
que nos restam, que nos ficam
para além do acto, para além da dança
por trás da cena, onde o pássaro,
já desnudo de cordas,
principia o voo
seremos felizes, meu amor,
especialmente felizes

onde deixar de haver o cá e o lá
e se extinguirem bastidores
plateia e palco
ao cair do pano
ao tombar dos véus

19/03/11

Um poema de amor, é certo. Um desejo de cumprimento desse amor. A superação dos limites, a plenitude, o cumprimento alcançam-se findo esse teatro, mas equivale isso à morte? Será a morte esse cumprimento? Ecos desse fim de acto motivados pelo capítulo 12 do livro bíblico de Eclesiastes, que têm como referente precisamente a morte. Ou a superação, quando se calarem os limites entre o cá, na própria vida, no apaziguamento desta? O poeta teve uma intenção quando escreveu, mas hoje, ao ler-se a si próprio, lhe parece que aquilo que escrevera o trai e que escreveu afinal coisa diversa. Traído pelo seu próprio discurso?

HERANÇA CLÁSSICA

O poeta é classicista. Estudou e mantém como objecto de estudo a Antiguidade, as línguas e a cultura clássica, grega e latina. Episódios de textos ou da História das civilizações grega e latina, ou versos de poetas. A começar pelo “Epitáfio das Termópilas”, que tem como mote famoso epitáfio escrito pelo poeta Simónides de Céos, em honra dos trezentos espartanos (ou lacedemónios), comandados pelo rei Leónidas, que tombaram heroicamente perante a horda de milhares do exército do rei persa Xerxes, que tentava a invasão da Grécia. Um feito que ficou na memória. O epitáfio de Simónides é colocado na boca dos próprios mortos, dirigindo-se a tu que é o viandante, aquele que passa por esse caminho, e a quem pede que seja o mensageiro destes factos aos seus concidadãos lacedemónios. Célebre o evento, célebres os dois versos que o fixaram para sempre. Nesta versão do epitáfio, o poeta imagina que o eu poético é o viandante estrangeiro cumprindo o pedido do epitáfio, transmitindo a notícia aos Lacedemónios, como mensageiro do pedido dos mortos aos vivos, para que mantenham viva a memória. Tão viva que o evento merece ser celebrado, e resgatado, salvo, da memória, entendida esta como um lugar de morte. Expresso em termos de linguagem informática, como numa memória de disco rígido, à qual se acede de quando em vez sem que afecte o quotidiano, para uma memória RAM, de superfície. De uma memória de arquivo morto, por assim dizer, para uma lembrança sempre permanente, que afecte o quotidiano. É um poema em quadras, com rima dos segundo e quarto versos.

EPITÁFIO DAS TERMÓPILAS

ὦ ξεῖν’ ἀγγέλλειν Λακεδειμονίοις ὅτι τῇδε
κείμεθα τοῖς κείνων ῥήμασι πειθόμενοι
Estrangeiro, vai anunciar aos Lacedemónios que jazemos
aqui, por termos obedecido às suas ordens”

Simónides de Céos, Epitáfio das Termópilas frg. 92 Diehl

Das longínquas Termópilas, estrangeiro
à passagem, Lacedemónios, vos escreve
ao ler à beira do caminho
da pedra fria esta inscrição breve

o silêncio pede um reconto,
que a salve da memória:
deste estreito onde só os heróis ousam
surge a lenda onde tombou a história

a lápide sepulcral não desprende gemidos
as letras nela gravadas são de memória brilhante
não as carcome o bolor nem o verdete
nem o tempo sobre ela é lume de um instante

dos trezentos de Leónidas que não hesitaram
lutar ou morrer para obedecer às vossas leis
recebei o testemunho, Lacedemónios, silente
e que admiração perpetuamente viva lhes celebreis

18/12/10


POESIA BÍBLICA

A temática cristã, bíblica está largamente presente na poesia deste poeta. Uma poesia de devoção, portanto. Episódios bíblicos, do Antigo como do Novo Testamento, versículos que tocam o coração do poeta, constituem motivos para a construção de um poema. Difícil a escolha. Fico-me por alguns exemplos, um mais recente, outros mais remotos. Primeiramente, pois, um inédito:

EXORTAÇÃO

Uma árvore tem sempre esperança”
Livro de Job 14:7

uma árvore tem sempre
esperança
semeada na raiz
enquanto os homens
deixam na terra, que lhes suportou
o peso, por tributo os ossos

só as árvores não morrem
mesmo que lhes separem
o tronco dos pés sempre darão
de si rebentos novos
pois persistentemente os seus olhos
fixam o seu amigo sol

tu homem em vez de rendido
ao rosto do pó
sê como as árvores
que se mantêm de pé,
em quem as aves do céu

também esperam

15/05/12

Nele se acham motivos amados pelo poeta (algumas das tais isotopias): a esperança, as árvores ou o sol. Os versos de Job põem em contraste a vida das árvores e a dos homens: aquela sempre com esperança, enquanto a raiz existir e esta permanecer na terra; esta última, pelo contrário, uma vez ceifada, é destruída. A esperança, como vista pelo poeta, infecto-contagiosa, por assim dizer, é transmissível: a árvores tem esperança, mas há quem (inominado) também tenha esperança na árvores.
Não seria justo omitir o poema cujo título é a versão ampliada do título próprio volume, e que sintetiza o seu espírito. Invoca a subida de Moisés ao Sinai, para um encontro com Deus. O título Subida é a versão reduzida do título de um dos poemas do livro, “Subida ao Sinai”. Este poema, como o título dá a entender, evoca a subida ao monte Sinai por Moisés (na verdade, foram várias as subidas, relatadas no livro bíblico de Êxodo caps. 3 e 19 a 34). As subidas ao monte foram para o legislador de Israel o encontro com o Todo-Poderoso, o Deus do universo, sem limites. Este encontro proporcionou-lhe por outro lado um encontro consigo mesmo, a sua humanidade, feita de falhas, lacunas e limitações. A subida é curvada, esforçada, de humilhação. Não apenas corporal, mas igualmente espiritual, em direcção a esse encontro. Encontro dual, mas não dicotómico, pois um, a revelação de Deus, seu carácter e lei, resolve o outro, levando-o à salvação, à superação de si mesmo, no meio e a despeito de todas as dificuldades.

SUBIDA AO SINAI (Subida p. 31)

Ao subir ao monte
subo de dorso curvado
e olhar arrastando
no chão

o coração ainda se ergue
para o pico
mas o peso da convocação de Deus
a massa ingente da profecia por nascer
acabrunha o próprio ar
que respiro

sarça que arde nos pés
sobre a delicadeza sagrada
da terra,
temo apenas rasgá-la
por isso o meu dorso
pesado sem asas
e carente dum mistério duma voz duma palavra
que o salve
vai curvado

e sobe

20/07/10

Finalmente, um mais antigo, do volume Muta uox:

VALE DA SOMBRA DA MORTE (Muta uox p. 82)

“Perguntou-lhe Simão Pedro: «Para onde vais, Senhor?» Jesus respondeu-lhe: «Para onde eu vou, tu não me podes seguir agora, mas hás-de seguir-me mais tarde.»”
Evangelho segundo João 13,36 (versão A Bíblia para todos)

Não podes, querido amigo,
seguir-me agora
sabes, tenho uma estrada diante de mim
que tu não conheces
pés nenhuns foram nela ainda
experimentados
o couro de sandálias nenhumas
nas suas pedras jamais se gastou

Querido amigo,
o céu aqui não é de açucenas
os penedos são gigantes espessos
ao passarmos rente a eles
acendem um véu negro no rosto
do abismo
o chão não é de pétalas
mas tem arestas é pontiagudo
como pregos que não descansam
o sangue

Sei que nele
há um vale da sombra
é todo o céu e toda a terra
em peso sobre a minha cabeça
sombra da morte mais temível
do que a própria
morte

Esse vale foi moldado à forma
rósea do meu corpo
o meu sangue foi-lhe
desde a Eternidade prometido
poderei eu estancá-lo?

Só eu,
querido amigo
só eu posso atravessá-lo

Deixa-me ir, querido amigo,
até à outra fímbria do vale

Lá as águas dos riachos
têm a cor do sol
então ao meu chamado virás
dirás que vens da minha parte

E no prado dos teus olhos
desenrolar-se-á,
até o perderes de vista, o verde

18/03/10


O título é retirado do v. 4 do Salmo 23 de David, e associado à Paixão de Cristo. O poema em si parte de um diálogo entre Jesus e o discípulo Simão Pedro, no Evangelho segundo João 13:36. Todo ele imagina as palavras desenvolvendo-se mediante imagens que denota o sofrimento pelo qual ele se preparava na passar. E terminando com um convite a Pedro para o seguir posteriormente, até à plenitude, figurada pelo “verde”, mas não antes que o próprio eu poético, Jesus, percorra esse caminho, de sofrimento, que somente ele estava em condições de percorrer, porque somente a ele estava destinado.