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sábado, 19 de maio de 2012

A Prova da existência de Deus em Sartre - Josef Pieper



Publicamos aqui dois pequenos  textos do filósofo alemão Josef  Pieper, publicados na Revista online Mirandum


A Prova da existência de Deus em Sartre

Trad.: Jean Lauand

A mais luminosa das argumentações formuladas nos dias de hoje para provar a existência de Deus procede de ninguém menos do que de Jean-Paul Sartre. E é não só plenamente moderna, como também completamente "existencial".
Sartre tem dois pontos de partida. Um deles é – como todo mundo sabe – a não-existência de Deus; um pressuposto que, na verdade, não vem fundamentado em nenhum argumento, mas que, em todo caso, se declara sem rodeios como pressuposto. O outro ponto de partida é a muito imediata e muito fortemente experimentada e expressa "não-necessidade do mundo". "A existência é o não-necessário", "o essencial é o acaso": são os juízos que Antoine de Roquentin – o protagonista do romance A Náusea – expressa quando contempla, ao redor do parque, as árvores, a fonte e, principalmente, a si mesmo. "Nós éramos todos um amontoado de existentes acabrunhados, não tínhamos a mínima razão para existir", "todo existente nasce sem razão, prolonga-se por fraqueza e morre por acaso".
Ora, pode-se dizer que isto seja outra coisa do que uma agressiva, mas no fundo plenamente adequada, descrição da contingência do mundo? Não é por acaso aquilo que sempre se afirmou: que nada daquilo com que nossa experiência se depara deve existir, não existe de forma necessária? Que há então de novo? Novo é, parece-me, que Sartre não aceita essa contingência: "Tive medo, mas principalmente raiva: achava aquilo tudo tão idiota, tão deslocado", "sentia uma raiva impotente". "Quando se compreende isso, o estômago começa a dar voltas: é a náusea! É absurdo que tenhamos nascido, é absurdo que morramos". "Tinha aprendido tudo sobre a existência. Voltei ao hotel e comecei a escrever".
Mas não é este exatamente o sentido da velha "prova da existência de Deus", que ainda alguém tão tardio como Hegel chama de argumento e contingentia mundi? Que – num e noutro caso – é o que se afirma, senão que um ser contingente, não-necessário, que "não se auto-sustenta" (Hegel), na realidade é nonsense, sem sentido, inconcebível, maluco, insustentável, absurdo..., a menos que...? A menos que... seja concebido em relação a um existente necessário, absoluto, fundamento e sustentação do ser: ...Deus?
Mas não poderia ser o caso de que o homem e o mundo re­almente não tivessem sentido algum e, portanto, absurdo seria também esse seu fundamento? Minha resposta comporta dois pontos: 1) Ninguém pode sustentar coerentemente tal afirmação; pode-se talvez pensá-la, mas não vivê-la. O próprio Sartre não o faz, senão como poderia ele falar de responsabilidade e liberdade? E baseado em que distinguiria o justo do injusto? Mas se se quiser fazer realmente o teste de coerência plena, então: 2) Não significaria essa ausência de razão para absolutamente tudo, uma ausência de fundamento também para a afirmação da não-existência de Deus?


O caráter problemático de uma Filosofia "não-cristã"

Trad.: Gabriele Greggersen e Jean Lauand

"Uma filosofia cristã é um círculo quadrado", uma contradição em termos – esta agressiva sentença de Martin Heidegger, evidentemente determinada mais por um impulso passional do que por um juízo ponderado, provavelmente não encontrará assentimento nem mesmo entre aqueles que admitem tratar-se de assunto extremamente problemático. O mais recomendável seria evitar totalmente a equívoca expressão "filosofia cristã" e falar, em vez disso, do "ato filosófico" e da "pessoa que filosofa".
Sob este ponto de vista, atrevo-me, aliás, a afirmar – pura e simplesmente invertendo a sentença de Heidegger – que qualquer pessoa que, pela fé, admita como verdadeira a mensagem cristã, deixaria de praticar seriamente o filosofar no exato instante em que ignorasse deliberadamente os dados provenientes do âmbito supra-racional. Reconheço, no entanto, que é precisamente quando se têm em conta os dados de fé que o filosofar – seja qual for o adjetivo com que o combinemos para caracterizá-lo – torna-se ainda mais "problemático".
Não é este, entretanto, o tema de que trataremos aqui; pretendo, antes, discutir um outro aspecto, que só raramente costuma ser considerado. Trata-se da discussão não já sobre o que há de "problemático" na inclusão dos dados da fé no filosofar, mas, sim, diretamente sobre o dilema, quase inevitável, que um filosofar expressamente não-cristão enfrenta. Evidentemente, não nos referiremos aqui às concepções do ser provenientes do mundo "não-tocado" pelo cristianismo, como por exemplo as do budismo ou do hinduísmo. Nossa tese refere-se unicamente à interpretação racionalista-secular – e, portanto, assumida e decididamente não-cristã – do mundo que pretende considerar-se "filosofia" no mesmo sentido em que esse conceito era entendido pelos fundadores da tradição ocidental de pensamento, como por exemplo Platão e Aristóteles.
Nesse conceito tradicional de filosofia, o sentido antes de mais nada literal da palavra grega philosophia é tomado, sobretudo por Platão, de modo muito mais originário do que ocorre usualmente. Platão toma estritamente ao pé da letra um dito de Pitágoras segundo o qual só Deus seria sábio (sophos), enquanto o homem, na melhor das hipóteses, é somente alguém que busca amorosamente a sabedoria (um philo-sophos). A afirmação de Sócrates, em O Banquete, de que nenhum dos deuses filosofa, não passa afinal de uma outra forma de exprimir o mesmo pensamento. E não é somente um Platão – a quem Kant chama "o pai de todos os sonhadores filosóficos –, que faz essa afirmação; também um realista como Aristóteles vem a dizer o mesmo. Aristóteles está convencido de que a pergunta sobre "Que é isto? Algo real?" – formulada por ele de modo resumido e compacto, em apenas três sílabas: ti to on? –, não é apenas uma questão que se coloca "desde sempre, hoje, e para sempre"; ela estaria almejando, para além disto, como diz Aristóteles, uma resposta conhecida unicamente por Deus.
As questões verdadeiramente filosóficas (como por exemplo: "O que é o conhecer?", "O que ocorre, do ponto de vista da totalidade, quando morre um ser humano?") impelem-nos a um confronto com o todo da realidade e da existência. Quem as formula vê-se, com efeito, obrigado a falar "de Deus e do mundo", e isto é precisamente o que marca a diferença entre a filosofia e a ciência. O médico que investiga a causa de uma doença já não está lidando com o mundo como um todo; não tem necessidade de falar "de Deus e do mundo"; aliás, nem ao menos está autorizado a fazê-lo. Se, por outro lado, ocorre-lhe examinar o sentido – o que "em si" e em "última instância" significa a doença –, então não poderia estar à altura desse objeto sem, ao mesmo tempo, refletir sobre a natureza humana em relação à realidade como um todo.
Também no Banquete de Platão, cujo tema é o Eros, ocor­re o seguinte: depois de terem falado o sociólogo, o psicólogo, o biólogo, alguém se levanta e diz que não se pode apreender o verdadeiro sentido do Eros sem considerar a natureza da alma e o que lhe sobreveio, nos primórdios, em confronto com os deuses. Passa então a contar o mito da perfeição originária do homem, falando a respeito da sua culpa e da sua punição. Em resumo, narra a história do paraíso perdido, interpretando Eros como o anelo pela santa forma primitiva. Ainda em Platão: no diálogo Menon, quando se torna evidente que já não é possível avançar no caminho da argumentação racional, Sócrates afirma que a partir deste momento se torna necessário apoiar-se naqueles "que são sábios nas coisas divinas". Mais uma vez, portanto, volta-se para um dado proveniente de fonte sobre-humana, cuja interpretação pode, de modo não impróprio, ser denominada Teologia.
Mesmo a reflexão crítica e fria da metafísica aristotélica não exclui de modo algum tais pensamentos. Um dos resultados mais surpreendentes da fundamental análise histórica de Werner Jaeger é a seguinte constatação: também a doutrina aristotélica do ser estaria, em última análise, determinada pelo credo ut in­telligam, pelo pressuposto anterior de uma fé que transcende o pensamento e é seu pressuposto.
Enquanto, pois, não se entenda por filosofia algo inteiramente diverso do que significava o conceito em sua primeira definição no Ocidente, permanecerá implícita e inerente à filosofia a exigência de um dado anterior, supra-racional. É natural que se coloque, precisamente neste ponto, a questão da possibilidade de que uma interpretação puramente racionalista da existência – neste sentido também absoluta e decididamente não-cristã –, possa, com direito, ser chamada de filosofia. Com efeito, tudo aquilo que, na concepção de mundo platônica, é chamado "sabedoria dos antigos", "conhecimento das coi­sas divinas", "tradição santa, oriunda de uma fonte divina por intermédio de um desconhecido Prometeu" – tudo isto encontra-se preservado (ainda que depurado, elevado e, ao mesmo tempo, infinitamente ultrapassado) na mensagem anunciada pelo Logos divino, que o cristão crê e venera como verdade intangível.
Talvez possam objetar-me que seria absurdo afirmar que, na nossa civilização ocidental, não haja nenhuma filosofia, que possa ser, ao mesmo tempo, indubitavelmente não-cristã e continuar a chamar-se legitimamente "filosofia". Sobre isto, gostaria de fazer duas considerações:
Em primeiro lugar, existem indubitavelmente formas modernas de "filosofia" que não têm nenhuma pretensão de ser filosofia naquele sentido originário; na realidade, trata-se, no caso, de ciência, ou scientific philosophy, cujo interesse e compreensão estão reservados unicamente a especialistas e técnicos, como, por exemplo, a lógica matemática ou a análise lingüística.
Em segundo lugar: uma filosofia que se pretendesse "não-cristã" de um modo inteiramente conseqüente, na qual simplesmente não fosse mais possível detectar qualquer elemento da teologia ocidental, é, no mundo ocidental, um fenômeno extremamente raro. Assim, Descartes responde à questão central da dúvida metódica – "Como podemos ter certeza de não estar apenas sonhando?" – apelando para a veracidade de Deus, que não poderia, de forma alguma, enganar-nos. Ou seja, Descartes apóia-se explicitamente na própria tradição da fé, que, no entanto, pretendia excluir por princípio. E quando Immanuel Kant, no seu ensaio sobre a religião, cita a Bíblia mais de setenta vezes, é evidente que não permanece – conforme havia anunciado programaticamente no título da sua obra – "dentro dos limites da razão pura". Evidentemente, não podemos só por isso falar numa "filosofia cristã"; contudo, é igualmente evidente que não se pode considerar esse tratado como totalmente "não-cristão".
Contemplemos, finalmente, o caso de Jean-Paul Sartre, cuja filosofia existencialista pretende ser a forma mais radical de filosofia não-cristã: teria sido absolutamente incompreensível para um nihilista pré-cristão, como por exemplo Górgias, o sofista antigo.
É preciso ser cristão para apreender o sentido da seguinte sentença: "Não há natureza humana, porque não há Deus para concebê-la".
Numa revista americana de filosofia, publicou-se, há algum tempo, a seguinte resenha (por acaso, a respeito de um de meus livros): "A filosofia está hoje ameaçada de dois modos: por um lado, arrisca-se a perder qualquer valor humano por uma redução à semântica e à lógica; por outro, arrisca-se a ser tragada por uma teologia obscura, ambígua (ambiguous) e incompetente. Os filósofos liberais de esquerda devem enfrentar esta provocação pela formulação de uma filosofia que evite ambos os perigos". Ainda que eu concordasse de modo irrestrito com a primeira parte, não consigo reprimir a suspeita de que os leftliberals, precisamente eles, jamais acolheriam uma teologia, mesmo que ela fosse não-obscura, clara e competente – com o que caem, precisamente, naquele dilema ao qual nos referimos aqui.

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