Talvez
você não saiba, mas a sociedade japonesa tradicional (ainda) é profundamente
racista. Até um mestiço de japonês com qualquer outro povo é visto com maus
olhos, e tem, claro, sua palavra depreciativa que o designe, konketsuji.
Os japoneses também possuem um termo pejorativo e universal para designar todos
os estrangeiros, gaijin. Sim, tive que pesquisar a fundo pois precisava
de um bom nome – afinal a firma trabalha assim, com nomenclaturas mixadas
entre o culto e o pomposo, cuja união faz fronteira com o ridículo.
A
ideia nasceu aqui nesta cachola grisalha, durante uma operação em Conceição da
Barra, no Espírito Santo. “Guindávamos”, de sua casa frontal à Praia de
Guadinxiba, um americano procurado fazia década, tanto pelas autoridades quanto
pela máfia de pirâmide financeira a quem fraudara. Beleza, ladrão que rouba
ladrão tem aqueles cem anos, sim, mas isso é outra história.
Compartilhei
a ideia numa reunião, um debriefing pós-operação, e o Fogazza, jovem delegado
cujo nome não nega a manha de folgadão, desfez do meu papo – mas, logo, veja
você, o levou a Brasília. Na moita.
Meses
depois, estava formada a divisão. Até o nome que sugeri o moço alegre
aproveitara, Divisão Gaijin. O miserável teve o desplante – ou a
misericórdia, que não deixa de ser sempre um ato de audácia – de me incluir
entre os agentes indicados.
Nossas
missões partiram desta tal minha ideia, tão chocha e óbvia que me estranha ninguém
a ter elucubrado antes. Somos uma equipe secreta, seleta e autônoma da Polícia
Federal, cujo trabalho é vasculhar o litoral brasileiro. Vamos pra mais especificidade, que o cargo
exige: Vasculhamos lugares – belas casas, palacetes, clubes e congêneres em praias
paradisíacas – em busca de estrangeiros. Ah, turistas não, estrangeiros residentes.
Um
trabalho de formiguinha, mas que dá retorno.
Retorno
do quê, você logo indagará. Bem, após quase duas décadas no métier, no
rude ofício policial, cheguei à conclusão de que a cada dez gringos que resolvem
fixar residência no lindo Brazil, um é fugitivo. Mas, dos alocados especificamente
na vida mansa de litoral, em praias medianamente ou pouco movimentadas, esse
número saltava para três, quase quatro. Acredite, é um belíssimo número, de
inflar qualquer currículo. Mas, e essa gringaiada eram fugitivos do quê? De
tudo o que você puder ou não imaginar, desde um corno bravo e vingativo até um
coração despedaçado – mas a maioria fugia da boa e desagradável saia da LEI.
Parece
papo de doido, “preconceituoso”, né não? Pois foi EXATAMENTE o que o delegado
Fogazza disse, antes de levar minha ideia pra Brasília...
Prestes
a aniversariar dois anos do início dos trabalhos, o apurado é o seguinte (segure
a aba do seu sofá): 86 criminosos capturados, 14 quadrilhas de especialidades
sortidas (tráfico de drogas, humano, de animais, obras de arte, veículos, até
aviões) desbaratadas.
Fogazza
agora é rei em Brasília, uma estrelinha hipster... O bombonzão chega a falar de
si mesmo na terceira pessoa, feito uma zorra dum Pelé. “Alexandre Fogazza estará
aí hoje”; “Alexandre Fogazza publicou um artigo no Globo”, diz, numa conversa
cara-a-cara onde você é o único interlocutor na sala. Bem, isso já diz tudo
sobre um homem.
Mas
algo deu ruim, que tudo que tem polícia dentro dá ruim, cedo ou tarde. A fama
da divisão – embora secreta – se espalhou, e aparentemente surgiu, dentro da
própria Federal, mas provavelmente envolvendo a colaboração de polícias
estaduais, uma divisão paralela: Uma galerinha muito esperta, muito polícia,
percebeu que descobríramos o pote de ouro no fim do arco-íris, pois tais fugitivos
acoitados geralmente tinham muito, mas muito dinheiro, e o dariam de bom – ou
mau, tanto faz – grado para escapar dum xadrez e extradição. Ou pior, duma
morte precedida de tortura.
Os
miseráveis chegaram antes de nós em pelo menos três alvos – isso, pela minha
contagem. Em duas os alvos já haviam se mandado sem deixar rastros; noutra o
infeliz fora morto após tortura, não sem antes abrir mão de suas barras de ouro
cimentadas na parede do banheiro. Descobrimos pelos resquícios – pó e lascas –
de ouro que ficaram na parede ou pelo chão.
Tinha
um puto entregando os serviços, tínhamos um traidor na divisão. Éramos apenas
12 indivíduos, nove homens, duas mulheres e o Fogazza, que flutuava numa
daquelas siglas nãoseioquêlá+.
Eu
tinha meu palpite, e como pai espiritual da ideia, o ônus maior de sua guarda
me competia.
Bolei
então um plano, armei uma casa de caboclo, como dizemos no Rio. Mexi os
pauzinhos e coloquei a coisa pra rolar. Se ladeira abaixo, eu estava prestes a
descobrir. Ia arriscar meu pescoço, mas, e daí? Patrícia fora embora com o Enzo
– o nome foi escolha dela – pra Itália, lá se iam três anos; a última que me
apareceu sumiu feito ninja, disse que eu tinha pouco tempo para ela e meu
trabalho era perigoso. Na carreira eu já não tinha muitas perspectivas, era um velha
guarda “xenófobo, homofóbico, misantropo” que “já devia ter saído das
operações de campo”, segundo ouvira murmurarem mais de uma vez, pelos
corredores. Mas eu era viciado nas operações de campo. Essa droga feita de
tensão e cheiro de pólvora era a minha vida.
Falando
em minha vida, vamos lá: Meses antes eu obtivera uma dica numa das agendas
apreendidas com um francês, um foragido da máfia corsa que apanháramos curtindo
o sol em Saquarema, a “Maracanã do Surf” no RJ. Trabalhei no fragmento, que me
levou até Ponta Negra, bairro litorâneo de Maricá, e lindeiro de Saquarema. Mas,
dados os afazeres do momento, deixei aquela dica em off.
Os
meses trouxeram a desconfiança da trairagem interna, e resolvi ressuscitar o
caso esboçado. Levantei por conta própria a planta do alvo. Era um italiano.
Geralmente os foragidos são lobos solitários, mas alguns, eu percebera,
possuíam ou estabeleciam laços de colaboração entre si. Era o caso,
aparentemente. Menos mal, um segredo entre duas pessoas é um segredo com prazo
de validade.
(Uma
cisma pairava aqui na cabeçorra: Haveria uma organização dedicada a facilitar a
fuga, a acoitação e a vida fugitiva de tais elementos, assim como a suposta
organização Odessa ajudava os fugitivos nazistas após a Segunda Guerra?
Bem, esta era mais uma questão para depois).
Dei
então minha cartada: Joguei a informação do italiano para apenas seis
elementos, quatro dos quais estavam entre os meus suspeitos de trairagem. Sim,
inclusive o Fogazza. Foi durante uma aparentemente aleatória – mas providencial,
pois eu a providenciara – campana no bairro de Piratininga, em Niterói (RJ). Vigiávamos
uma casa de praia. Simulei então que recebera uma denúncia às pressas, quentíssima,
e deveríamos ir imediatamente até o local da dica (Maricá, a menos de 60
quilômetros dali), sem informar a mais ninguém, pois o tal italiano “tinha
laços no Governo”. Já encontráramos ao menos dois outros leitões que tinham,
sim, profundos laços – e cuja prisão quase nos complica a divisão e a vida.
Eu
estava sentado estrategicamente na parte de trás do veículo de sete lugares, de
onde podia observar a movimentação dos celulares dos demais. Tínhamos um acordo
de evitar ao máximo o uso dos celulares durante as operações de busca e captura
em campo. Assim, era esperar o primeiro dedinho nervoso.
Meus
olhos de seca-pimenteira fuzilavam as quatro cobras criadas de minha lista –
Fogazza, Iran, Hélio e Anselmo. Madalena, coitada, era a certinha da equipe,
certinha de tudo: mantinha abrigo para animais, o que lhe consumia 2/3 do
salário; denunciara, por duas vezes, pequenas infrações de nossa própria equipe
– e só não fora desligada da mesma pois tinha um baita padrinho. Quem nunca? Já
o Marcelo era o mais jovem de nós e o mais novo na equipe, um molecote nerd,
bobalhão, que entrara no último concurso – ficou em segundo lugar nacional.
Falastrão demais e pior, medroso demais pro ofício, mas passou, e tinha lá seus
méritos, segundo o delegado.
O
Fogazza foi o primeiro a tamborilar os dedinhos no touchscreen. Seguido
pelo Hélio. Depois foi o Iran. O baile estava movimentado!
50
quilômetros e 30-e-tantos minutos depois estávamos na belíssima Ponta Negra.
Avançamos à toda para a casa indicada, uma construção luxuosa de dois
patamares.
Abandonamos
o veículo e assumimos posição de abordagem, em frente ao portão. Anselmo tentou
abri-lo; fechado por dentro. Iran, o mais afoito e parrudo de nós, pulou o muro
e abriu o portão, cuja chave descansava na fechadura.
Eu
assumi posição em segundo plano, torcendo para a isca ter sido mordida pela
nossa provável barracuda – sem que a minhoca italiana escapasse, pois sem ela
só metade do meu objetivo seria completado. Mantinha um olho nos padres e outro
na missa: Fogazza estava de cara emburrada, já desde o momento em que soltei a dica;
Anselmo a todo instante dizia, “vamos com calma, vamos com calma”; até o
matraca do Marcelo estava em silêncio, olhos arregalados, inexpressivos como um
zumbi de sua série favorita – mas esse tinha sua explicação, o medo.
Já
no quintal, em cuja centralidade estava a casa, dividimo-nos em dois grupos,
para dar conta das duas portas rotineiras. Eu, Fogazza, Anselmo e Madalena
entramos pela frente, enquanto Iran, Hélio e Marcelo foram pela porta dos
fundos.
Porta
arrombada, passei para primeiro plano e avançamos limpando os cômodos – todos
vazios – até o pé da escada que dava acesso ao segundo patamar. Ali fomos
recepcionados pelo que eram provavelmente palavrões em italiano, seguidos ou
confirmados por cinco tiros de pistola. Fizemos fogo contra o atirador, e
enquanto três agentes teciam uma cortina de chumbo como cobertura, outros dois –
eu e Iran – avançávamos escada acima.
O
segundo pavimento era composto por um banheiro, sito logo em frente à escada,
cuja portinhola estava escancarada; um grande varandão, isolado por grades; e
dois cômodos de portas fechadas, provavelmente quartos. Após abordar o primeiro
quarto, vazio, rumamos para o segundo, sob cobertura dos companheiros
posicionados logo atrás. A porta estava entreaberta, e ao imbicar a minha Glock
.40 percebi o elemento – um barbudo e descabelado carcamano à la Zé
de Abreu, prestes a saltar pela janela, uma maletinha na mão e a pistola – uma
ridícula Walther mini – na outra. Fez menção de atirar, mas eu tinha
meus planos, e trabalhara por meses neles. Disparei dois tiros em suas pernas,
seguidos de mais dois – para espanto de Iran, que me seguia. Era o momento de
ouro, a janela de oportunidade da deusa Verdade. Avancei para o elemento, que
largara a arma, ao mesmo tempo em que sinalizei para Iran vasculhar embaixo da
cama e nos armários (eram os primeiros lugares em que uma mulher se escondia),
antes que os demais adentrassem o recinto. Chutei a arma caída, e nem fiz
menção da pequena maleta. Enfiando desesperadamente as mãos nos bolsos do
barbudo, apanhei seu celular – um iphone. Ato contínuo, catei a mão
direita do carcamano e desbloqueei o aparelho com a sua digital, enfiando-o
imediatamente no meu bolso. Os demais chegaram, no momento mesmo em que eu
aplicava uma espalhafatosa coronhada na testa do bruto, despachando-o para os
areais do sono.
-
Matou o cara?! – já foi berrando o Fogazza.
-
Só dei na perna. Ele ia atirar.
Iran
pegou a maleta, que entregou a Fogazza para a averiguação, enquanto os demais
revistavam o quarto e o varandão. Havia um carro na garagem, me ofereci para
fazer a varredura nele. Anselmo permanecera lá embaixo, enquanto Marcelo me
seguiu. Suava em bicas, talvez nervoso pela inexperiência em tiroteios.
–
Vou ver o carro. Abra os potes dos armários da cozinha, sempre tem coisa neles – apontei, despachando o Marcelo. Anselmo tomara
posição regulamentar do lado de fora dos muros, guarnecendo o portão.
Apanhei
a chave, abri o veículo. Minha intenção não era vasculhar porta-luvas, malas e
fundos falsos, mas sim ter liberdade para fuxicar o tal celular.
Já
dentro do carro, olhei para os lados, e divisei o maldito do Fogazza, que da
janela do quarto me observava. Era ele o filho da %#&@...
Mas
eu não tinha tempo pra conjecturas, precisava é duma merda duma prova. Dei de
João-sem-braço, tomei posição no banco do carona, de forma a sair do campo de
visão do chefe.
A
última mensagem no Telegram era para o contato “Filha”. Foi a
penúltima que me chamou a atenção.
“A
casa caiu. Estamos indo praí agora. Eu falei pra vocês todos vazarem! Sai fora
logo”. O nome estava como “Amigos BR”. Termo sugestivo e ao mesmo
tempo inconclusivo, não fosse quanto ao número, pois o idiota do “Amigos BR”
nem fizera questão de utilizar um pré-pago, um número neutro. No exato momento
em que a ficha caiu, senti o geladinho na cara, o aço de uma pistola Glock
.40, como a minha.
-
Me dá essa po##@. Devagar.
A
pistola, assim como o número no visor eram, quem diria, do mais jovem de nós, Marcelo,
que suava em bicas de medo e nervoso.
Levei
a mão esquerda, com o celular, devagar em direção à janela, enquanto a direita
se posicionava para dar um empurrão na porta – ou morrer tentando. Mas o
moleque era mais malandro do que aparentava, e se afastou instintivamente do provável
raio de impacto da mesma. Azar o dele: Ao se afastar do carro, junto ao qual
estava semiagachado, se pôs no ângulo de visão de Fogazza.
O
playboy não errou o tiro.
* * *
A
tensão dominou todo o transcorrer daquela incursão; eu temia haver outros
comparsas de Marcelo na equipe, e não tirei mais a mão do coldre. De surpresas
eu já estava legal.
Os
agentes estavam desconcertados. Me chamando a um canto, Fogazza disse que já
desconfiava de algo, e também trabalhava no “tema”. Ele “encomendara” até
escutas, e sabia que o papagaio era um elemento interno, agindo sozinho.
Confesso
que aquilo não me satisfez, mas a cara de horror e incredulidade dos demais
conspirou a favor da versão.
Só
então se dando conta de que o inútil acaso nada tivera a ver com aquilo, e que eu
armara pormenorizadamente todo aquele bote, foi que o delegado voltou ao seu
normal. Num ataque de pelanca, aos berros, questionou por que maldito motivo eu
não lhe dissera nada.
Xingou,
xingou muito e pelo próprio nome (!) à minha mãe Cleidemar, quando eu disse que
desconfiava dele também.
Playboy
fresco do cacete. Ao menos é bom de mira.
Sammis Reachers
Este conto faz parte do livro Fabulário Índigo. Disponível em formato impresso (aqui) e e-book (pela Amazon, aqui).