O ÚLTIMO SALTO
Foi duma ardência que nunca senti. Me rasgando a garganta. Sentia como o líquido ia, a um tempo, queimando e como que fazendo inchar, expandir-se, tanto a extensão de minha língua quanto as paredes da minha garganta, traqueia... 10 ml de veneno daria conta, mas eu tomei 300ml, um belo copo.
Retornei como que de ressaca. E atrasado: havia já programado uma nova morte e esta fora gestada por um mês. Custou dinheiro, tempo perdido com instrutores. O avião decolaria às 10h00. Saí do IML e peguei o primeiro ônibus.
Conheço mais IMLs do que pregadores itinerantes conhecem púlpitos de igrejas de onde vão arrancar seu ganha-pão.
Lembro-me sempre não da primeira, mas da segunda vez em que morri. Acreditei que sonhava: ainda era usuário das mesmas drogas que me mataram da primeira vez.
Na primeira, afinal, não soube sequer que havia morrido. Só me lembro de sentar-me, muito chapado, na cadeira do fundo de um ônibus, e começar a tremer, mas sem sentir frio. Acordei numa maca fria de um hospital, coberto com um lençol. Era madrugada: levantei-me e saí. Alguém detrás de um balcão, sonolento, esboçou um “Ei! Ei!”. Sonolento, creio que não ouvi.
Estava muito grogue e achava que era efeito posterior da aparente overdose que me jogara naquela maca. Ou talvez de alguma medicação. Só com o tempo e outras mortes fui perceber que sempre despertava com aquele tipo de zonzeira. Era a vida engrenando as marchas.
Curiosa a minha hipervida, não? Mas a coisa toda é simples: sou um homem que não consegue permanecer morto. Sou sempre expelido pela Morte de volta à vida. Escarrado. Não sei o motivo. Até onde eu sei, não sou vítima de nenhuma maldição, artefato místico, genética alienígena, experiência científica. Estar preso numa grande matrix, num programa simulador de realidade, claro, é uma possibilidade. Para todos nós, afinal.
Nunca utilizei meu “poder” para trazer qualquer benefício para ninguém. Creio que nem mesmo para mim. Era um drogado já com certa inclinação suicida, e ao descobrir tal dom ou maldição tudo o que fiz foi curtir, curtir ao máximo o que, ainda creio, estava vedado a qualquer outro homem: mais que sofrer, saborear a morte. Pisoteá-la, ela a tão cheia de botas.
Passei simples e sistematicamente a suicidar-me das mais diversas e criativas maneiras que me ocorriam.
Mas, e como é estar morto?, você deve estar perguntando-se. São muitas mortes, e variadas as experiências, e múltiplas as respostas. Vezes houve em que, defunto meu corpo, só vi escuridão e silêncio. Noutras, ouvi vozes, algumas conhecidas me chamando a esmo, noutras vezes gritos de dor. Vi a luz em forma de túnel. Vi a área em torno ao meu corpo, pessoas observando-o, tentando me reanimar.
Em Uganda fui estraçalhado por um leão e fiquei horas (eu ou meu espírito? Na verdade sempre meu espírito e sempre eu, pois somos espíritos, e não corpos) observando meu corpo mutilado, abandonado pelo jovem leão após se ter saciado. Quando hienas se aproximaram, meu meio corpo foi salvo por guardas florestais. De repente senti como que se lançado num torvelinho, um rodopiar do vento que aumentava sua força e girava meu espírito como uma cueca numa máquina de lavar. Despertei ensacado no jipe que levava meu corpo para a capital do país. Eu poderia relatar outras trinta experiências assim.
Você já pisou num chiclete? Aquela sensação, meio nojenta e noutra metade angustiosa, de perceber o chiclete esticando-se indefinidamente junto com seu calçado, quando este se levanta? Assim ocorre com o espírito. Ele desprende-se do corpo como um chiclete, esticando-se, grudento.
Sinto falta da sensação do desprendimento, imensa saudade de morrer. Desta única vez, ao menos, por um bom motivo.
Hoje estou preso a um corpo imóvel, o qual não posso matar. Escrevo este relato apenas com os olhos: utilizo um programa criado especialmente para pessoas em situação como a minha, tetraplégicos. Essas quase três páginas que você acabou de ler me custaram dias de trabalho, olhares e piscadelas para os sensores do monitor que me causam uma dor de cabeça terrível. Minha última aventura kamikaze deu errado, errado pois... sobrevivi. Em meia vida: O acidente lesionou minha coluna cervical, e aqui estou.
Nunca vi Deus, anjos ou demônios em minhas muitas mortes, ou nesses períodos que passo fisicamente “morto”, pois quem sou eu para saber se isso é mesmo a morte? Mas, após dois anos aqui, prisioneiro neste corpo, eu que me julgava e porventura fui o mais livre dos homens, um anárquico super-homem, viciado no próprio poder, no próprio ego, desisti de teimar. Em lágrimas sem ter quem as secasse, lembrei das conversas – perdão, das audições – com dona Solange, missionária capelã que semanalmente vem até esta ala do hospital e conversa conosco. Eu a ouvia, mais interessado em simplesmente ouvir alguém do que em ouvir o que ela estava falando.
Me lembrei de suas palavras, e sem palavras gritei o mais alto que pude por aquele Deus de quem ela fala tão feliz, esse Jesus que tanta luz e confusão trouxe ao mundo. Gritei mentalmente, gritei e gritei e chorei – um dia, dias, qual a diferença? – imóvel como um cadáver em meu corpo paralisado, até que senti sua mão em meu ombro. Senti, senti mesmo não tendo nenhuma sensação do pescoço para baixo.
- Pare de gritar.
Fiquei em “silêncio”, apenas chorando, confuso de raiva e espanto e vergonha. Raiva pela fraqueza, vergonha de chegar àquele ponto, àquele estado de miserabilidade, e espanto por ele estar ali.
- Você quer respostas, mas eu quero saber se você está realmente cansado.
- Estou, Senhor. Não aguento mais essa prisão, e nem mesmo aquele morrer e ressuscitar que me trouxe até aqui.
- Dura sorte lhe coube, pois dura sorte é sair daqui e para cá voltar, sem o beneplácito do Pai. Tudo o que você fez foi acumular pecados, e inutilizar vez após vez tudo o que eu lhe dei. Mas, se quer e se crê, um pouco mais de tempo e morrerá, e ressuscitará a ressurreição verdadeira, para nunca mais morrer, num novo corpo feito de paz e para a paz criado. Um corpo que você não poderá e nem quererá despedaçar.
Confesso que eu, habitante do inusitado, estava confuso como jamais estivera. Ideias de que aquilo era só mais um sonho ou fruto de um transe medicamentoso me solapavam sem trégua. Mas reagrupei a coragem que me fazia experimentar a morte vez após vez, e com coragem fui para o tudo ou nada, como quem salta sobre um abismo, pois sentia acima de tudo que aquele momento era um “tudo ou nada” como jamais experienciara em minha estendida existência.
- Eu quero, Senhor Jesus! Eu quero...
Fechei os olhos para que as lágrimas que embaciavam minhas órbitas fossem expelidas e escorressem, e ao abri-los já não havia ninguém lá.
Continuo preso; vezes há em que amaldiçoo minha existência, ou o mal uso que fiz da singularidade, buscando a morte apenas por curtição, desperdiçando o que era um verdadeiro superpoder.
Nunca mais o vi, embora o chame constantemente, e por vezes minha fé naquele dia e naquelas palavras titubeia. Mas lancei-me no tudo ou nada e, com a resignação dos prisioneiros, espero. Entendi o que dona Solange dizia tantas vezes, “é preciso ter fé, e basta ter fé”. Minha existência kamikaze me permitiu entender que a fé é um salto no escuro, que pega impulso no escuro, e mira adiante, no escuro, para alcançar além do escuro.
Sammis Reachers
Publicado originalmente no Jornal Daki.
Este conto faz parte do livro Fabulário Índigo. Disponível em formato impresso (aqui) e e-book (pela Amazon, aqui).