Ao contrário do que escreve o poeta John Keats (1795-1821), na célebre
Ode a
um Rouxinol sobre Rute, atribuindo-lhe um coração triste “quando recordava o
seu lar e chorava diante das searas dum país
estrangeiro”, a verdade é que
esse pathos nostálgico da saudade se transformou em ânimo para aceitar a
vida nova em terra estranha e um trabalho humilde que, aparentemente, a
secundarizava.
No livro bíblico de Rute, canonicamente colocado entre Juízes e os I e
II livros
de Samuel, o profeta que poderia ter sido rei numa teocracia, a diegese
é um
relato que tem a força da emocionalidade e do profético, da beleza dos
sentimentos à necessiadade da afirmação messiânica no meio de um povo
israelita, governado por Deus
através de juízes, que o próprio Senhor suscitou ( Juízes, 2,16)
Em síntese, escreve um comentarista da Bíblia Sagrada JFA, da Editora
Vida
Nova, “O livro de Rute descreve a direcção providencial de Deus na vida
de
uma família israelita.”
Tal narrativa de vida não deixa de ter a poética – no sentido
aristotélico que
determina que sentimos deleite perante o que lemos - a valorizar os
acontecimentos e a conferir-lhe uma estética que é o Belo na vida de
Rute e o
que esta representa na genealogia do rei teocrático David, cuja linhagem
vai
até Jesus.
OS
VERSOS DA ODE DE JOHN KEATS
A celebrada Ode tão cheia de melancolia do
canto do rouxinol, que o poeta
romântico inglês escreveu em 1820, traduz uma visão da vida humana
transitória não isenta de sofrimento e de
amargura, em contraste com o alegre
e despreocupado canto do rouxinol.
Esse
canto “pleno e calmo” da ave de Keats, no espaço textual da ode,
aparece com uma equiparação, que o embeleza pelo
oposto, entre a tristeza
do poeta perante a velhice, a mortalidade, o
desejo de voar para fora do mundo
e a imaginada tristeza que o poeta inglês
pensa ver no semblante e na alma de
Rute. Ele supõe que esta mulher da Bíblia, ao
encontrar-se perante uma gente
e uma terra estranhas, sofre da melancolia da
saudade.
Os versos, repetindo-os, são os seguintes: “O
espírito triste de Ruth, quando
recordava o seu lar / e chorava diante das
searas dum país estrangeiro.”
(“Poesia Romântica Inglesa
(Byron,Shelley,Keats)”, Inova, 1977, pág.88)
A expressão da natural tristeza e saudade que
acompanha quem sai da sua
terra para outra estranha, no caso de Rute,
não é contudo mostrada como tal
nas Belas-Artes do Clássico e do Barroco. Por
exemplo nas telas a óleo de
Nicolas Poussin (1664) e de Barent Fabricius (1660), ambas revelando o
encontro feliz entre Boaz e Rute.
O
DEVASTADOR CAPÍTULO 1 DO LIVRO
O que se iniciou como
tragédia, não era senão o começo do
Plano divino.A
partir de um simples e pequeno núcleo
familiar, sem importância social aos
olhos humanos, Deus iria agir universalmente
na História.
É, literariamente, uma saga familiar cuja
narrativa se exprime num estilo
poético, dolorosamente poético, apontando de
igual modo para uma história de
idealidade e de nobreza de carácter.
“Não me
instes para que te deixe, e me afaste de ao pé de ti; porque aonde
quer
que tu fores irei eu”( 1,16).
A dialogia (a estrutura de diálogo) que se percebe
nesta resposta de Rute à
sua sogra Noemi, desenvolve-se com qualidade
visivelmente de poesia: “ e
onde
quer que pousares à noite ali pousarei eu”; como a própria menção do
estado converso de Rute ao Deus de Israel, é
feita numa frase lapidar,
metacultural, metahistórica, numa
expressividade idiomática antiga: “o teu
povo
é o meu
povo, o teu Deus é o meu Deus”.
A narrativa descritiva da chegada de Noemi e
Rute a Belém é em si mesma um
quadro em que a fraternidade, a alegria do
reencontro fraterno resolve o
problema da saudade que estaria nos olhos
interiores dos familiares e vizinhos,
que agora eclodia em alegria comovida: “ entrando elas em Belém, toda a
cidade
se comoveu por causa delas, e diziam: Não é esta Noemi?”, (1,19)
Noemi, que é ainda a figura central da
diegese, ciente do drama que vivera,
usa uma metáfora entre a imaginação e a
realidade, ao declarar: “Não me
chameis Noemi (i.é. agradável); chamai-me
Mara; porque grande amargura me
tem dado o Todo-poderoso”, (1,20)
A
CENTRALIDADE DE UMA PERSONAGEM REAL
O facto de se considerar um livro canónico,
integrando as Sagradas Escrituras
veterotestamentárias, de ser mesmo um livro
da liturgia judaica durante a festa
do Pentecostes, tal não invalida que possa
ser tratado como uma das mais
belas peças literárias da Bíblia Sagrada.
Assim, Rute é uma heroína em consequência da tragédia
inicial que reverte em
beleza e bênção.
Rute diante do que parece ser uma
adversidade, adopta, pragmaticamente,
um modo de sobrevivência que só pode ser o
sentimento e o bálsamo de Deus
a trabalhar no seu espírito.
No nosso século, com os instrumentos de análise do texto
literário, lemos as
expressões do pensamento do puro amor -.ágape, / sem sexismo ou
machismo prevalecente, uma antecipação do romantismo, como um valor
imortal no
remotíssimo século XIII a.C.
“ Deixa-me colher
espigas” disse Rute a Boaz. Este responde:”Não ouves filha
minha?
Não vás colher a outro campo, nem tão pouco passes daqui.(…)Os
teus
olhos estarão atentos no campo que segarem(…), não dei ordem aos
moços,
que te não toquem? Tendo tu sede, vai aos vasos, e bebe do que os
moços
tirarem” ( 2, 8-9)
“Então ela caiu
sobre o seu rosto, e se inclinou à terra” (2,10). Baixou os olhos,
por certo ruborizada. É poesia porque tem estrutura de
verso e é simbólico de
uma atitude de respeito bem oriental. “Por que achei graça aos teus olhos”. Por
seu lado, é um expressivo exemplo de lirismo que embeleza
a humildade, não
a subserviência.
Um dos grandes poetas evangélicos clássicos brasileiros,
Jonathas Braga, escreve em “O Milagre do Amor” (poema
longo sobre o livro
de Rute, de 1969): “Quem
é essa criatura angelical que cisma / e a luz do seu
olhar
sobre outro olhar abisma?”
Assim é o Livro bíblico de Rute: um quadro luminoso da
gratidão, do apego aos
mais velhos e do amor com A maiúsculo.
© João Tomaz Parreira