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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

A ORELHA DE VAN GOGH






"yo quiero
 celebrar una oreja"

Pablo Neruda



Passou a ouvir coisas por sua própria conta, 
A orelha cortada de Van Gogh, corvos
A crocitar, um silvo de facas no ar,
Raquel chorando os filhos que não teve,
As raízes do trigo em luta contra a morte
Sob a terra,
Onde é noite a luz e fria, ouvia as sombras
A deslizarem lentamente
E como uma concha arrancada ao mar
Escutava o nevoeiro e as ondas esquecidas.

25-02-2015
©  João Tomaz Parreira


segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Ilhas de Juan Fernández: ROBINSON CRUSOÉ - Eduardo Galeano


O vigia anuncia fogos distantes. Para buscá-los, os flibusteiros do Duke mudam a rota e põem a proa em direção à costa do Chile.
A nau se aproxima das ilhas de Juan Fernández. Uma canoa, um talho de espuma, vem ao seu encontro, lá da fila de fogueiras.
Sobe na coberta um novelo de cabelos e imundície, que treme de febre e emite ruídos pela boca.
Dias depois, o capitão Rogers vai entendendo. O náufrago se chama Alexander Selkirk e é um colega escocês, sábio em velas, ventos e saques. Chegou à costa de Valparaíso na expedição do pirata William Dampier. Graças à Bíblia, ao punhal e ao fuzil, Selkirk sobreviveu mais de quatro anos numa dessas ilhas sem ninguém. Com tripas de cabrito soube armar artes de pescaria; cozinhava com sal cristalizado nas rochas e para a iluminação usava óleo de lobos-marinhos.
Construiu uma cabana nas alturas e, ao lado, um curral de cabras. No tronco de uma árvore marcava a passagem do tempo.
A tempestade lhe trouxe restos de um naufrágio e também um índio quase afogado. Chamou o índio de Sexta-Feira, porque esse era o dia. Dele aprendeu o segredo das plantas. Quando chegou o grande barco, Sexta-Feira preferiu ficar. Selkirk jurou que ia voltar, e Sexta- Feira acreditou.
Dentro de dez anos, Daniel Defoe publicará, em Londres, as aventuras de um náufrago. Em seu livro, Selkirk será Robinson Crusoé, nascido em York. A expedição do pirata britânico  Dampier, que tinha limpado a costa do Peru e do Chile, se transformará em uma respeitável viagem de comércio. A ilhota deserta e sem história saltará do Pacífico para a boca do Orinoco, e o náufrago viverá nela vinte e oito anos. Robinson também salvará a vida de um selvagem canibal: master, amo, será a primeira palavra que ensinará em língua inglesa. Selkirk marcava com a ponta de uma faca as orelhas de cada cabra que capturava. Robinson projetará a divisão da ilha, seu reino, para vendê-la em lotes; marcará cada objeto que recolher do barco naufragado, fará a contabilidade de tudo que produza na ilha e fará o balanço de cada situação, o dever das desgraças, o haver das sortes.
Robinson atravessará, como Selkirk, as duras provações da solidão, o pavor e a loucura; mas na hora do resgate Alexander Selkirk é um espantalho esfarrapado que não consegue falar e se assusta com tudo.
Robinson Crusoé, ao contrário, invicto domador da natureza, voltará para a Inglaterra, com seu fiel Sexta-Feira, fazendo contas e projetando aventuras.

In Memórias do Fogo vol. 2

 

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

O TESTAMENTO DE REMBRANDT VAN RIJN






Rembrandt: A Ceia de Emaús


Deixou os discípulos de Emaús
no cavalete, encostados
outros quadros ao silêncio, a aparição
de Cristo no horto, a lembrança e os traços da morte
nos seus claros-escuros, deixou algumas roupas de linho
ou lã e as cerdas dos pincéis, as suas coisas
da pintura, no seu nome as águas do Reno  
Poucas coisas
ainda assim maiores do que a miséria.

O4-O2-2015


© João Tomaz Parreira