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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

EU NÃO SEI DIZER O QUE É DEUS



"Não há culpados para a dor que sinto/ é Ele, Deus que me dói / pedindo amor"
Adélia Prado



Eu não sei dizer o que é Deus, é maior

que eu, explode

desde a mais pequena à maior palavra

Eu não sei

o que é Deus, como Zaqueu

preciso subir a uma árvore para ver quem É

Senti-LO é já o tremer do coração, do trânsito

que se faz na alma, eu não sei

dizer, apenas vejo e dói-Me.


30/10/2012

© J.T.Parreira 

domingo, 28 de outubro de 2012

UMA ROSA


À memória de Sophie Scholl
(1921-1943)


Nasceu uma rosa na Alemanha
nasceu branca, de um branco
que encandeou os olhos
dos que a colheram

nasceu íntegra numa madrugada
sábia, de uma sabedoria 
que perturbou os lábios 
dos que a segaram

não correu, como rosa que era voou
presa no caule, livre nas pétalas
com o vento por aliado, não há paredes
que retenham o aroma
Deus é o artista que lhe apura o perfume

precisava de uma rosa a Alemanha
branca, para lavar os olhos

Rui Miguel Duarte
26/10/12

sábado, 27 de outubro de 2012

Moby Dick - Um ensaio do princípio



"A meditação e a água encontram-se para sempre
intimamente ligadas"
Herman Melville



O meu nome é Ismael. Catão lançou seu corpo
sobre a ponta da espada, eu
tranquilamente vou para o mar. Nenhum amor
me prende à terra firme, a parte aquática do mundo
é que me chama. Chega ao meu coração
como um aroma. É o modo
que tenho de fugir ao suicídio, sempre
que a alma é um nevoeiro espesso
e se fecha como um Novembro brumoso
Chega a altura de voltar
com pressa para o mar. Antes que dê
por mim a seguir o rasto aos funerais, a arrancar
na cidade os chapéus aos transeuntes, a cair
no tédio de já nem conseguir rir-me do espelho
Preciso de um espelho marinho, onde lance os olhos
do topo de um mastro. Uma só gota de mar
é colírio para evitar a noite nos meus olhos.

27/10/2012


© J.T.Parreira

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O GUETO DE KOVNO


Vista da Rua Krisciukaicio no Gueto de Kovno

O Gueto

Gueto de Kovno, Lituânia, 1941

"Temo somente uma coisa:
Não ser digno de meu tormento."
Dostoievski


A ajuda saiu de lugar nenhum,
andou pela estrada do nada
e nunca chegou até aqui.

Mas
mas, sobretudo
sobretudo há
há uma glória negra
uma glória negra
em ser o último homem da terra,
em estar
no último lugar da terra,
Ilha do Esquecimento,
cercado de noite e morte
por todas as portas.

Há uma glória secreta e negra
em ter sido abandonado
por tudo o que existe.

Sammis Reachers, no livro Poemas da Guerra de Inverno  

*Como o famoso Gueto de Varsóvia, ao longo da guerra foram estabelecidos diversos guetos nos países conquistados pelas forças alemãs. O Gueto de Kovno foi um gueto estabelecido pela Alemanha Nazista para conter os judeus lituanos de Kaunas durante o Holocausto. Em seu auge o gueto deteve 40.000 pessoas, a maioria das quais foram posteriormente enviadas para campos de concentração e extermínio, ou fuziladas no IX Forte.  Os lituanos, aliados dos alemães por desejarem verem-se livres do domínio soviético, participaram ativamente na caça e execução dos judeus de seu próprio território.
(Com informações de Wikipédia e outras fontes.)

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

CAMÕES E A TENÇA


“Este país te mata lentamente.”
Sophia de Mello Breyner Andresen, “Camões e a tença”

Irás aos Paços, Camões, pedir a tença
— disseram-te e tu acreditaste
são tantas as palavras
que se dizem hoje que amanhã se desdizem
e depois há sempre quem diz tudo
e mais alguma coisa
sem saber o que dizer, simplesmente diz
pois quando te disseram, Camões,
irás aos Paços pedir a tença
deverias ter entendido de outra forma,
Camões,
ou não fosses poeta, os poetas
têm sempre múltiplo entendimento

eis o que deverias ter entendido:
irão os Paços a ti, Camões, hoje,
pedir-te a tença que te deram ontem
e amanhã voltarão os Paços a ti
pedir-te a tença que te dão hoje
para que queres mais? aos Paços não sobejam
as tenças, cada moeda de cuja carga te aliviarem
é uma asa mais que te dão, pois és poeta,
e os poetas só precisam de fogo
que arde e se não vê,
de mares nunca dantes navegados
e de buscar mais Taprobanas
e aos Paços não sobejam as tenças
pois enormes são os passos perdidos e achados
dos Paços, tantas as alcovas,
câmaras e antecâmaras dos Paços,
Camões

este país te mata lentamente, Camões,
és poeta
e os poetas morrem devagar
e o povo que oiça os poetas, devagar,
na passagem do vento
pelo ventre vazios, mas de corações
cheios dos teus poemas
Camões, e dos dos outros poetas
sim, Camões, lentamente,
tença alguma paga os teus poemas, Camões,
somente a lentidão da morte é preço suficiente
até à escansão do último verso,
aquele que ficou branco e em branco…

irão os Paços a ti, Camões, pedir-te a tença,
e se a tença já não tiveres,
se já a tiveres gastado
ou perdido na pena do voar,
pedir-te-ão a camisa, as calças,
e se camisa e calças já não tiveres
pedir-te-ão o pão, pois de pão não vive
um poeta, mas de todos os versos
que provêm da sua boca
este é o desconcerto do mundo,
mas o poeta
tem sempre o coração no alto, e a boca
nas longínquas Índias

e por fim se nada mais houver
até os teus versos
te levarão, Camões, porque te preocupas?
com eles farão uma bela edição póstuma
e um belo dia, num momento especial
citá-los-ão comovidos
e chorarão de saudades tuas, e dirão
que esses versos foram proféticos,
que falavam desses bravos e mostrengos
que os Paços e este país atravessam,
mas com os Paços ao leme, com os reis
no comando do batalhão
não haverá fome que não dê em fartura,
Camões

lentamente te mata, Camões, este país,
porque te preocupas?
entrega a tença, sê magnânimo,
em breve findará a tença
deixará também de haver país
que te mate, e sem país que te mate,
como morrerás, Camões?
porque te preocupas?
se Deus quiser, também se perderão
os Paços e as suas penas
e as suas tenças

Rui Miguel Duarte
24/10/12

domingo, 21 de outubro de 2012

DIAS BRANCOS





Espero-Te, que voltes
para ocupar as pegadas
todas que deixaste
ao meu redor.

21/10/2012

 © J. T. Parreira

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

ICHI

“Nunca sei o que corto
o meu olhar ausentou-se de mim”
(do filme Ichi, de Fumihiko Sori, 2008)

o meu olhar está ausente de mim
perdeu-se na neve

nunca sei se é dia ou noite
se quem vem é amigo ou se vem
para me estuprar, ausentou-se
e deixou a sombra na ponta do sabre
que ao atravessar o ar
corta a escuridão no sangue
de quem me afronta,
cada golpe é mais uma ave que sibila
de morte,

nunca sei o que corto, eu só quero
dissecar a treva, encontrar quem me dispôs
a vara em que me apoio nesta estrada, que me deixem
de novo ouvir a voz que me trouxe a vida
até esta beira de abismo, que me deixem ver-lhe
os olhos com os meus, trocar a sua cegueira
pela minha, dançar nos volteios finos do sabre
uma vez e sempre, quem é ele, meu pai?

Rui Miguel Duarte
17/10/12


segunda-feira, 15 de outubro de 2012

O que disse Maria junto à Cruz



“Maria – Sempre soube que não eras meu”
(Peça de teatro de Teresa S.G.Páscoa e Ana Tavares)

 
Soube sempre que não eras meu
que te olhava com um amor sem linguagem
nos meus olhos, sempre soube
que te escutava com uma sabedoria distante
nos ouvidos
sempre os teus silêncios eram divinos
que o teu coração era um céu profundo
soube sempre que não era
este mundo este reino a tua casa.

14/10/2012
© J.T.Parreira


(Pietá, de Van Gogh )

domingo, 14 de outubro de 2012

O PÃO



τὸν ἄρτον ἡμῶν τὸν ἐπιούσιον δὸς ἡμῖν σήμερον
“o pão que provê à nossa subsistência dá-nos hoje”
Evangelho Segundo Mateus 6:11

O pão desce sobre a substância
diária pela neblina fresca desliza
suspendendo o deserto que cresce
em que habitamos
este é o pão, tome o lugar
sobre a mesa antes de o sol nascer
e pouse sobre a essência da fome
dá-no-lo da tua mão
que criou o dia de hoje
dá-no-lo quente e a estalar a côdea dura
das nossas bocas

Rui Miguel Duarte
15/10/12

Um poema de Miguel de Cervantes



Pra Ti me Volto, Alto Senhor

Tradução de José Bento

Pra Ti me volto, alto Senhor, que alçaste,
à custa do teu sangue e tua vida,
a mísera de Adão inicial caída,
e, onde ele nos perdeu, nos recup’raste.
A Ti, Pastor bendito, que buscaste
das cem ovelhazinhas a perdida
e, achando-a plo lobo perseguida,
sobre teus ombros santos a deitaste.
Pra Ti me volto na aflição amarga
e a Ti cabe, Senhor, o dar-me ajuda,
pois sou cordeira de teu aprisco ausente:
temo que na corrida curta ou larga,
quando a meu mal teu favor não acuda,
me há-de alcançar esta infernal serpente.

in Breve Antologia da Poesia Cristã Universal (leia online ou faça o download gratuito AQUI).

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Carlos Nejar: Luiz Vaz de Camões



Luiz Vaz de Camões
Carlos Nejar

Não sou um tempo
ou uma cidade extinta.
Civilizei a língua
e foi resposta em cada verso.
E à fome, condenaram-me
os perversos e alguns
dos poderosos. Amei
a pátria injustamente
cega, como eu, num
dos olhos. E não pôde
ver-me enquanto vivo.
Regressarei a ela
com os ossos de meu sonho
precavido? E o idioma
não passa de um poema
salvo da espuma
e igual a mim, bebido
pelo sol de um país
que me desterra. E agora
me ergue no Convento
dos Jerônimos o túmulo,
que não morri.
Não morrerei, não
quero mais morrer.
Nem sou cativo ou mendigo
de uma pátria. Mas da língua
que me conhece e espera.
E a razão que não me dais,
eu crio. Jamais pensei
ser pai de santos filhos.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Por estas ruas





Por estas pedras vai-se à casa em frente

a sentir o som da terra

com estes ombros carregamos a fome

dos animais, esta cabra

única vai guiando os nossos olhos

já cansados

por estas paredes o tempo escorre

e espera, vai

esperando que se abram as janelas.



4/10/2012

© J.T.Parreira